Por Alfredo Aquino
Artista plástico e editor da Edições Ardotempo
Aldyr Garcia Schlee é um dos grandes escritores brasileiros. Habita no mesmo cais em que estão Guimarães Rosa, Erico Verissimo, Jorge Amado, Cecília Meireles, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade e alguns outros. Outros, que não são muito numerosos. É uma experiência maravilhosa entrar no seu universo literário original, o das gentes simples e de comportamento espontâneo e veraz, transversal e dinâmico da linha divisória, ora de um lado, ora no outro lado, ora transgressor, ora desbordante em hábitos e palavras peculiares, comuns aos dois povos. Seus livros são imagéticos, cinematografia eloquente e escorreita, a monumental dos grandes descortinos do Pampa, campos, horizontes, nuvens epifânicas, trovejantes e o infinito; e o das cenas fechadas das intimidades mais secretas e silenciosas, que vão nos conduzindo aos planos e aos contraplanos de sua imaginação, roteiro de inúmeros filmes inventados de forma convincente por ele e descritos em papel.
Por vezes, duas personagens de contos diversos em diferentes livros, de singelas e assombrosas ações tão comuns na fronteira, com atividades de lida e destituídas de heroísmos, isentas de ênfases, encontram-se numa outra circunstância e podem produzir um romance, uma noveleta pueblera, como o autor, com sua modéstia nos adverte, podem enveredar com inéditas ações, que nos capturam a atenção até o final. O escritor dialoga e escuta suas personagens. E conta-nos com voz baixa, as histórias que delas aprende, revelando-nos mundos que desconhecemos.
"Meus personagens são os rejeitados", diz o autor – sabendo que vai nos contar histórias, dramas, alegrias e emoções significativas e até comoventes de gente que, à maioria dos leitores, está sempre invisível, aparentemente fora de sintonia com um mundo real, e que, na verdade, é o mundo paralelo e tangível que conduz os destinos da grande maioria das pessoas, resultando daí a magia de uma empatia e de identificações muito intensas.
Aldyr Garcia Schlee deixou-nos no momento em que mais produzia, com entusiasmo juvenil, cheio de projetos no universo literário e artístico; tinha terminado a elaboração minuciosa e dedicada a um Dicionário de Termos Pampianos da Cultura Sul-Riograndense, obra essencial que está em revisão final para sua publicação em breve (Ato Cultural); lançara um novo romance, O Outro Lado (Edições Ardotempo), no qual inventou um refinado e original artifício literário que prende a atenção dos leitores e das leitoras até o final do livro e até depois do seu final, transbordando uma trama que termina e não termina, que ainda continua algumas páginas, retendo a atenção de quem lê, como se o escritor quisesse enfeitiçar e cativar esses leitores para sempre, mantendo-os hipnotizados pela sedução de sua generosa imaginação literária.
O escritor estava trabalhando ainda, com afinco e disciplina diária, num projeto ambicioso, um novo livro de contos em que propunha o espelhamento de algumas histórias suas, inéditas, com algumas histórias contadas por Jorge Luis Borges, nas quais ele encontrara alguns elementos comuns para aventurar-se num novo labirinto de imaginação. Contos com Espelhos, chama-se esse livro que, generosamente sugeria e estimulava a leitura de outros livros de Borges juntamente com este seu novo livro. Que resultou inacabado e sem projetos de publicação até este momento.
Schlee estava exultante com a perspectiva de ir em breve a Montevidéu para o lançamento de sua tradução ao espanhol do livro Los Limites del Imposible – Cuentos Gardelianos (Ediciones de la Banda Oriental) – premiado romance em que conta, pelo depoimento de 12 mulheres a história do nascimento de Carlos Gardel, em Tacuarembó, Uruguai.
Uma vida intensa e produtiva do apaixonado escritor, que era o vetor de um entusiasmo, de uma alegria estimulante e que contagiava a todos. Que o abordavam a cada momento, em todos os locais, em Pelotas, em Porto Alegre, em Jaguarão, em Rio Branco, e a todos atendia com seu sorriso inesquecível – tinha sido o professor de todos, em Direito, em Letras, em Jornalismo e, principalmente, na Vida.
Não concessivo, jamais se permitiu ferir seus princípios e suas convicções em nome de um pragmatismo de conveniências e de oportunidades. Dessa forma, seu caminho foi cheio de pedras e de inúmeras armadilhas assestadas contra ele. Nunca as enfrentou com ressentimentos ou rancor. Apenas as testemunhava e permanecia em silêncio. Teve motivos consistentes por sofrer profundas injustiças, prejuízos materiais e agressões físicas ao tempo da Ditadura Militar, como professor e como jornalista. Foi sabotado e discriminado em várias ocasiões. Nunca reclamou. Nunca foi escolhido para patrono da Feira do Livro de Porto Alegre, apesar de vencedor de duas Bienais Nacionais de Literatura, de sete Açorianos, do Prêmio Fato Literário RS e da Comenda do Ministério da Cultura.
Eram outras gestões, outros patronos, outros interesses.
Criador do mítico uniforme da Seleção Brasileira de futebol, a camisa Canarinho, o maior símbolo de identidade nacional do Brasil, não oficialista; o que lhe valeu o reconhecimento pela Fifa como "um herói do futebol mundial" num documentário realizado pela BBC (Inglaterra) e o reconhecimento planetário com o minuto de silêncio mais longo da história do futebol no mundo, com direito a textos em inglês, francês, espanhol, português e imagens suas e seus esboços de criação para bilhões de espectadores. Andava meio descontente pelo uso político da camisa amarela e afirmava que era um símbolo democrático, que representava a todos e não a uma facção política segmentada.
Sentia muita falta de sua companheira de vida toda, Marlene Rosenthal Schlee, que sempre fora seu esteio, sua força, sua memória, sua mais rigorosa crítica literária e a melhor leitora. Mãe de seus três filhos, Sylvia, Andrey e Aldyr. Dizia com tristeza que não sabia fazer nada sem ela, "nem um ovo sabia fazer", e que isso era o sinônimo de sua solidão.
Essa é a solidão repentina e monumental que o escritor nos legou, a falta inesperada e irreparável que nos desconsola e desampara, a memória de o que já não será e de tudo o que ele já tenha feito para nós. Devemos ficar atentos e ler e reler os livros de Aldyr Garcia Schlee.