Santa Monica, Califórnia – Como alguém que criou duas séries de animação de sucesso e está lançando a terceira, Matt Groening, 64 anos, pode dar um conselho para garantir que qualquer um venda seu peixe criativo.
"Aqui vai a minha dica para quem quiser se aventurar em Hollywood: basta dizer que é uma mistura de 'Os Simpsons' com qualquer coisa, ou qualquer coisa com 'Game of Thrones' e pronto, já ganhou", ensina ele.
Groening estava meio brincando por causa de "(Des)encanto", em cartaz no Netflix. Seu novo seriado, sem dúvida, exibe as mesmas sensibilidades satíricas e o mesmo traço curvilíneo tão característico de "Os Simpsons", atração antiga da Fox – mas embora se desenrole em um reino medieval com magos e dragões, não é exatamente uma resposta a "Game of Thrones".
O novo trabalho está mais para um amálgama cômico de franquias de fantasia como "Senhor dos Anéis" e os épicos animados de Hayao Miyazaki, para identificar duas das dezenas de influências.
De fato, é a primeira criação de Groening para um serviço de streaming – os dez episódios iniciais podem ser consumidos em uma maratona de cinco horas – e, como consequência disso, é também a primeira a ter uma narrativa serial.
"Há trinta anos trabalho com uma animação sequencial semanal para o horário nobre. De repente ter um monte de episódios que vão ao ar todos ao mesmo tempo, é preciso contar uma história bem redonda. Tem sido bem divertido – e, ao mesmo uma tortura toda típica", revela.
Para Groening, parte do desafio na criação de "(Des)encanto" é o de adaptar a obra ao gosto e o ritmo da TV contemporânea, que mudaram consideravelmente desde a estreia de "Os Simpsons" em segmentos intercalados a "The Tracey Ullman Show".
Parte da dificuldade – e do prazer – é fazer algo diferente da primeira série, clássico da cultura pop que vive sendo julgado pelos padrões que estabeleceu, servindo de parâmetro eterno para as criações subsequentes de Groening.
Nós nos encontramos às onze horas de uma manhã de junho – e ele já tinha passado pelo escritório no estúdio da Fox, em Los Angeles, para deixar algumas observações a respeito do episódio seguinte, e deixado Nathaniel, o filho de cinco anos, no acampamento de verão.
Sua mulher, Agustina, uma artista argentina, estava em casa com as gêmeas recém-nascidas, Venus e Sol. "O espanhol é a língua que se ouve lá em casa. Não falo uma palavra, mas sei quando estão se dirigindo a mim", brinca ele.
Groening estava trabalhando do escritório pessoal, em Santa Monica, em um edifício quadradão que não revela muita coisa de sua ligação com "Os Simpsons". Lá dentro, as portas dos banheiros masculino e feminino são diferenciadas sutilmente com linhas onduladas que sugerem os cabelos espetados de Bart e Lisa. Seu espaço de trabalho, no segundo andar, tem uma decoração mínima, baseada na memorabilia simpsoniana, alguns discos de Frank Zappa e umas estatuetas empoeiradas do prêmio Emmy.
Mas o artefato que ele estava mais desejoso de mostrar no momento era um notebook meio estropiado no qual vinha reunindo informações e ideias para "(Des)encanto" há pelo menos oito anos: linhagens de famílias reais fictícias, listas de filmes de referência ("A Princesa Prometida", "Jabberwocky - Um Herói por Acaso") e esboços de um elfo de ar atrapalhado chamado Elfo que vem desenhando desde que tinha dez anos de idade.
"Aliás, todo personagem que desenho é baseado no que eu fazia naquela época. Todos têm olhos grandes e redondos, nariz pequeno e bocarra", comenta.
A partir desses dados díspares, Groening criou uma série que conta as desventuras de uma princesa rebelde (na voz de Abbi Jacobson, de "Broad City A Cidade das Minas"), o tal do elfo (Nat Faxon) e um demônio meio sacana (Eric Andre).
Embora cada episódio conte uma história fechada, Groening informa: "Todo detalhe está relacionado às coisas que serão desvendadas ou explicadas mais tarde. Logo de cara já há momentos – tipo dicas, pistas e ovos de Páscoa – que colocamos ali especialmente para aqueles que prestam atenção de verdade".
Para construir e povoar os reinos interligados entre si, Groening contou com a ajuda de colegas de confiança – como Josh Weinstein, showrunner de "(Des)encanto", que já cumprira a mesma função em "Os Simpsons" e foi um dos produtores da série de ficção científica que veio logo depois, "Futurama", que teve sete temporadas, todas exibidas na Fox e no Comedy Central.
A série protagonizada por Homer, Marge & Cia. se tornou um sucesso comercial, cultural e de crítica que, na era pré-internet, conseguiu se isolar das opiniões do público.
"A gente não tinha a mínima ideia do que o público achava. Sério mesmo. Por isso, a liberdade era total. Com '(Des)encanto' é a mesma coisa, a sensação é a de que tudo pode ser feito, o que é coisa raríssima", confessa Weinstein.
A equipe de roteiristas da nova série consiste de cerca de doze pessoas, sendo que pelo menos metade é de veteranos de "Os Simpsons" e "Futurama", e a outra metade de desenhos como "Gravity Falls: Um Verão de Mistérios".
"Eles nem sabem quem é Mary Tyler Moore", comenta Groening a respeito dos jovens roteiristas, "mas acontece que, nos anos 80, eu me esqueci de ver TV, então há uma geração inteira de referências que me escapou".
Bill Oakley, ex-roteirista e parceiro de Weinstein, foi showrunner de "Os Simpsons" e produtor de "Futurama". Ele conta que a diretiva de Groening para a nova série é que ela não deve "exigir nenhum conhecimento prévio de fantasia por parte do telespectador; aliás, não precisa nem gostar". "Groening está mais interessado no crescimento e progresso dos personagens", acrescenta.
"É uma lição que aprendi, em parte, com 'Futurama', que se passa no século XXXI em um universo habitado por robôs, alienígenas e pessoas-lagostas, uma imitação das convenções de gênero e da interação humana. Em '(Des)encanto', temos que ir além das piadinhas de fantasia e explorar as emoções verdadeiras."
Tendo se tornado a série roteirizada do horário nobre mais longeva da história da TV, "Os Simpsons" volta e meia se depara com questionamentos sobre sua mordacidade e relevância. Groening é enfático ao dizer que sim. "Continuo apaixonado pela série.".
"Claro que não é o que era no auge, quando tinha uma popularidade insana, mas continua a me fazer rir porque ainda surpreende."
Groening afirma que seu interesse na criação de "(Des)encanto" e a exibição em uma plataforma pouco tradicional são resultado do desejo de criar algo novo. "Eu só queria saber como seria se tomasse um rumo diferente", conclui.
Por Dave Itzkoff