A vida pode até imitar a arte, mas o que se viu e verá em 2018 na Marquês de Sapucaí, no Carnaval do Rio de Janeiro, é a arte imitando a vida. Levando para avenida mensagens carregadas de críticas sociais e políticas, pelo menos quatro escolas devem fustigar as feridas dos brasileiros durante a maior festa popular do país. Com isso, este ano deve ter um dos carnavais mais politizados dos últimos anos.
Quarta escola a entrar na avenida na primeira noite do Grupo Especial, a Paraíso do Tuiuti desfilou com alas em alusão à desigualdade social desde a época da escravidão. Logo na comissão de frente, a Tuiuti mostrou escravos sendo chicoteados.
A escola de São Cristóvão também apontou o dedo para a exploração rural e em oficinas industriais, além de criticar a reforma trabalhista. Uma das alas foi dedicada exclusivamente aos manifestantes de protestos que eclodiram nos últimos anos nas ruas das grandes capitais. Eles foram representados por fantoches usando um pato amarelo preso à cintura.
Para finalizar, o carnavalesco Jack Vasconcelos levou a uma alegoria um personagem de vampiro vestindo uma faixa presidencial, em uma clara referência ao presidente Michel Temer.
O comentarista de GaúchaZH Cláudio Brito, que acompanha a festa direto do Rio, definiu a passagem da Tuiuti como "antológica e fantástica".
Ainda na primeira noite, a Mangueira também levantou a bandeira dos protestos. Com duras e explícitas críticas ao prefeito do Rio de Janeiro, o ex-bispo Marcelo Crivella, a verde e rosa cantou "Com dinheiro ou sem dinheiro eu brinco", em referência ao corte de 50% dos subsídios da prefeitura para as escolas anunciado no ano passado.
Com criatividade e sem perder o brilho, a escola levou ao sambódromo um carro com o prefeito como Judas e fez referência aos tradicionais blocos da capital fluminense.
Na segunda noite de desfiles, nesta segunda-feira (12), o tom não baixou. Beija-Flor e Portela jogaram mais luz nos problemas sociais.
A azul e branco de Madureira tenta o bicampeonato recontando a história de pessoas que abandonam os seus países em busca de paz, como os judeus que fugiram da Europa para o nordeste brasileiro. A ideia da carnavalesca Rosa Magalhães é discutir a questão em tempos de intolerância e xenofobia.
Em um dos trechos, a Portela cantará: " Pedindo paz a javé, perseguido na fé / O imigrante veio trabaiá / Oh saudade que vai na maré / Passa o tempo e não passa a dor".
Em referência aos refugiados que deixam seus países em função da guerra ou da fome, uma alegoria levou botes à avenida. A carnavalesca estava em uma dessas alegorias.
Para fechar o Carnaval do Grupo Especial do Rio de Janeiro, a Beija-Flor de Nilópolis levou o enredo "Monstro é Aquele Que Não Sabe Amar. Os Filhos Abandonados da Pátria Que os Pariu" para a Sapucaí. A ideia foi, partindo do livro Frankenstein, da escritora Mary Shelley, que completa 200 anos em 2018, traçar um paralelo com as mazelas vividas atualmente no Brasil.
Um dos trechos do samba diz: "Ganância veste terno e gravata / Onde a esperança sucumbiu / Vejo a liberdade aprisionada / Teu livro eu não sei ler, Brasil!".
Criticando a corrupção e os mais diferentes tipos de intolerância - religiosa, sexual, racial e até mesmo esportiva -, a escola levou nomes como Pabllo Vittar e Jojo Todynho para seu desfile.
A Sapucaí como palco de manifestações
Não é de agora que a maior festa brasileira retrata as questões políticas e sociais do país. Em 1974, a Beija-Flor exaltou os "feitos" da ditadura militar com o enredo "Educação para o desenvolvimento, Brasil ano 2000 e Grande decênio", o que levantou duras críticas à escolha do tema.
Em 1985, a Caprichosos de Pilares cantava em referência à democracia: "Diretamente, o povo escolhia o presidente / Se comia mais feijão / Vovó botava a poupança no colchão / Hoje está tudo mudado / Tem muita gente no lugar errado".
Quatro anos depois, em 1989, já com o lendário carnavalesco Joãosinho Trinta (1933 - 2011) no comando, a Beija-Flor voltou a chamar a atenção com o enredo “Ratos E Urubus… Larguem Minha Fantasia”, quando levou pobres, mendigos e malvestidos para os holofotes em uma visível crítica às mazelas do povo brasileiro. A escola não ganhou o título naquele ano - perdeu para a Imperatriz Leopoldinense, que levou o tema "Liberdade liberdade, abra as asas sobre nós" -, mas é lembrada até hoje por aquele Carnaval.
A mesma escola de Nilópolis também chamou a atenção - e levou o título -, em 2003, ao cantar "O povo conta a sua história - Saco vazio não para em pé - a mão que faz a guerra, faz a paz", que falou sobre a fome. Carros que representavam o caos social levaram para avenida estátuas de um mendigo bêbado e presidiários com telefones celulares. Finalizando o desfile, a azul e branco apresentou uma imagem do ex-presidente Lula.