Frida Kahlo morreu em 13 de julho de 1954, uma semana após completar 46 anos. “Espero alegre a minha partida, e espero não retornar nunca mais” foi a última frase escrita em seu diário. Ainda era uma artista pouco conhecida, exceto no círculo de seu marido (o pintor Diego Rivera), formado por artistas, intelectuais e militantes comunistas. No ótimo livro México – História duma Viagem, publicado em 1957 pela Editora Globo, Erico Verissimo faz um retrato detalhado do país, dedicando um capítulo aos pintores – e não há uma linha sobre Frida. Ao se despedir, no diário, ela não poderia imaginar que não apenas suas pinturas e excentricidades seriam reconhecidas, como se tornaria um dos ícones mundiais do século 21.
Em poucos dias na Cidade do México se percebe que Frida hoje é imbatível em popularidade, só rivalizando (e olhe lá) com Nossa Senhora de Guadalupe. Padroeira da nação, a Virgem de Guadalupe deve a origem de seu culto ao aparecimento para um índio asteca – há uma basílica dedicada a ela, e sua imagem está em todos os lugares. Tanto na capital como nas principais cidades, as feiras são uma marca mexicana. Nelas, estão desde os molhos picantes para as carnes crepitando em frigideiras até uma infinidade de guloseimas.
Nas tendas que vendem camisetas, vestidos, bolsas, cadernetas, leques, pôsteres, chaveiros, artesanato, o visitante pode apostar que encontrará Frida em várias versões, inclusive a infantil. Com menos frequência a verá servindo de rosto para o corpo iluminado da Virgem de Guadalupe. Heresia? E o que dizer de outra tradição mexicana, as caveiras e os esqueletos, homenagem aos mortos que vem da cultura pré-colombiana adaptada pela religião colonizadora? Com sua coroa de flores, a caveira Frida pode ser vista dos mercados de artesanato da capital às áreas de comércio a céu aberto dos sítios arqueológicos como Teotihuacan (Cidade do México) e Chichen Itza (Yucatán). Seu “logotipo” inconfundível aparece entre imagens milenares, sem relação objetiva entre uma coisa e outra.
Não é diferente nas lojas de suvenires dos locais turísticos, como Cancun e Playa Del Carmen. Entre suas atrações estão as tradicionalis e coloridas bonecas de pano mexicanas, que de uns anos para cá também ganharam as sobrancelhas de Frida. Nas lojinhas dos museus, dependendo da temática, a imagem dela poderia ser considerada fora do contexto. Caso do espetacular Museo Nacional de Antropologia, maior espaço mundial de história e arte pré-colombiana: ao lado de centenas de objetos específicos do local, como reproduções de figuras das culturas olmecas, astecas e maias, livros e revistas de arte, você depara com ela na forma de uma boneca ou com o rosto em caixas de lápis, canetas e embalagens de chocolate.
Desde que se entendeu como artista, a cultura pré-colombiana foi a que ela elegeu como centro das criações de cores vivas, tanto nas roupas e adereços que desenhava e costurava quanto no drama que expunha nas pinturas. Diego Rivera representou nos murais as histórias índias e europeias que formaram o México. Frida se identificava com os índios, alma e coração do México profundo, desconsiderados pelas elites descendentes dos espanhóis – até hoje as telenovelas mexicanas quase só têm atores brancos. Frida materializou o orgulho índio.
O Museo Frida Kahlo, situado no bairro de Coyoacán (onde ela nasceu e morreu), é visita turística “obrigatória”. Criado quatro anos após sua morte, na famosa Casa Azul, enorme residência dela e de Rivera, além de mostrar algumas de suas pinturas, o museu tem o encanto da intimidade. Pode-se ver a cozinha, a sala, os quartos dos dois – no de Frida, entre frascos de remédios na mesa de cabeceira e quadros de outros pintores, uma moldura ao pé da cama reúne fotos de Marx, Engels, Lenin, Stalin e Mao. Estão expostos os vestidos que ela criava e, na peça mais impactante, uma vitrina com os coletes (armaduras?) de gesso que usava para amenizar as dores na coluna vertebral, todos “customizados” com desenhos. Quem não chegar bem cedo na Casa Azul pode amargar uma longa espera na fila. E quem chegar usando os ônibus turísticos poderá entrar em um com o rosto de Frida impresso nas laterais.
Então, a imagem de Frida Kahlo é onipresente no México. Mas quando e por que isso começou a ocorrer?
Claudia Wasserman, professora de História da UFRGS com doutorado em História Social pela UFRJ, fez sua tese sobre o México. Viveu lá durante sete meses em 1997, ficando surpresa ao retornar ao país 10 anos depois e constatar a dimensão de mito que passara a cercar a figura de Frida.
– Até aquela altura não era assim – diz Claudia. – Penso que isso foi se construindo a partir da virada do século, quando o tema do comportamento se tornou dominante. É possível que os efeitos da insurreição zapatista, deflagrada em 1994, também tenham chamado a atenção do mundo para outros lados do México, mostrando a força da cultura indígena, defendida por Frida.
A professora a entende como “uma mulher à frente de seu tempo”. Ao lado de Rivera, integrou a elite revolucionária do México. Em 1936, o casal abrigou Leon Trotski e sua mulher Natália, o que não foi pouca coisa, pois Trotski, um dos líderes da Revolução Russa de 1917, chegara ao México após exílios por Turquia, França e Noruega, estando jurado de morte por Stalin, o ditador da União Soviética – e Rivera e Frida eram membros do Partido Comunista Mexicano. Para complicar as coisas, ela teve um caso com Trotski, dizem que para se vingar das traições de Rivera com a irmã dela... Tais histórias (e muitas mais) estão romanceadas no brilhante livro O Homem que Amava os Cachorros (Boitempo, 2014), do cubano Leonardo Padura, que culmina com o assassinato de Trotski em Coyoacán.
Se esse livro põe Frida na ficção, é porque a imagem real dela já estava consolidada.
– Ela se tornou símbolo feminista, embora não se falasse em feminismo em sua época. Imagine uma mulher libertária, que faz do corpo o que quer, derruba estereótipos, usa roupas chamativas, se diverte às vezes vestindo roupas masculinas, não se depila, é bissexual – comenta Claudia.
A primeira abordagem do “fenômeno”, o livro Frida – Uma Biografia, da norte-americana Hayden Herrera, foi lançado em 1983. Mas só ganharia notoriedade nos anos 2000 – a edição brasileira (Globo Livros) é de 2011. Para Hayden, Frida “desconstrói conceitos, rompe barreiras culturais”. Ela própria era uma obra de arte ambulante, com seus vestidos multicoloridos, adereços de cabeça, anéis em todos os dedos, brincos enormes. Depois desse, viriam outros livros sobre ela e sua obra pictórica – que o escritor francês André Breton inseriu no movimento surrealista, mas que ela definia como realista, dizendo que não pintava sonhos. Sobre a relação de Frida com Breton vale uma historinha: hospedada na casa dele, em Paris, em 1939, resolveu sair dali em pouco tempo, incomodada, entre outras coisas, pelo fato de os anfitriões não gostarem de tomar banho e estranharem que ela banhava-se todos os dias. Breton dizia que Frida era “um laço de fita ao redor de uma bomba”.
Entre os impulsionadores globais do mito está o filme Frida (2002), de Julie Taymor, com a atriz Selma Hayek, que de certa forma a vê como uma heroína. Em 2008, a primeira exposição das pinturas dela no Palácio de Belas Artes, na Cidade do México, bateu recordes de visitação – e lá estão murais de Rivera, Orozco e Siqueiros. Em 2010, as efígies de Frida e de Rivera, uma de cada lado, passaram a ilustrar a cédula de 500 pesos (segunda de maior valor), o que representou a anexação oficial de Frida ao cotidiano dos mexicanos – Rivera já tinha o status de pintor oficial do país, mas hoje pouco se vê dele nas manifestações populares.
Em 2012, a edição mexicana da revista Vogue foi dedicada a Frida, rompendo com o paradigma de só expor na capa modelos ou pessoas do universo da moda. Em seguida, a mesma foto ilustraria a edição francesa da Vogue, dedicada às mulheres latino-americanas. Em coleções e editoriais que se espalharam pelo mundo, Frida Kahlo está na moda.
Mais de 40 anos depois de morta, a artista passou a inspirar pintores, escritores, músicos, designers, publicitários, artesãos e industriais. Um exemplo gaúcho é o espetáculo de teatro Frida Kahlo, à Revolução!, da Cia. Dramática, que estreou em 2009 e encerrou agora em 10 de setembro a mais recente temporada. A imagem de Frida, e o que traz de conteúdo agregado, circulam pelo mundo sem parar. Por incrível que pareça, na cultura pop, Frida Kahlo hoje talvez só perca para os Beatles em dimensão icônica. Seria muito legal se pudesse estar vendo tudo isso. Ou não?
Leia mais de Juarez Fonseca
Jornalista, crítico musical, colunista de ZH