Quem lê pelos outros é sempre um mau leitor. Eis uma máxima para nossos dias. Necessário explicar (o que já enfraquece o aforismo) que não se trata de ler para os outros, para uma criança, para alguém que amamos, aquele estender da emoção de alguma passagem que nos faz pedir ao outro que pare tudo e escute as palavras que nos tocaram. Também não se trata de ser mediador de leitura, professores ou pais, que julgam ser cedo ou tarde para o contato com um livro, mas nunca com o intuito de proibir sua leitura.
Refiro-me a quem lê para decidir o que é ofensivo a outra pessoa ou a grupos de pessoas. Sob a regra da ofensa, cairiam quase todos os personagens da literatura, que tantas vezes existem para nos fortificar em um mundo, este sim, de reais ofensas. E bem, não sei quanto a vocês, mas para mim, qualquer um que se arroga o direito de editar o passado, ou controlar o que se pode dizer no presente, segue à sombra de um só nome: censor.
Mas bem, há muito prometi ser um anacronista, ou seja, não falar do agora – os ruídos de hoje serão o silêncio de amanhã –, mas dos rumores que o tempo não logra de todo apagar, os de natureza mais íntima, preservados, quem sabe, nesta precária e milagrosa ferramenta que é a linguagem.
Durante os anos do segundo grau, eu costumava descer do Rosário até o mercado, tomando a General Vitorino para chegar à Marechal Floriano, a fim de escapar da Rua da Praia. Eu precisava ir até a Uruguai, donde saía o glorioso Assunção, então cruzava a Borges e entrava pela José Montaury, passando pela fachada cinzenta de um grande hotel e pelos botecos sempre cheios.
No entroncamento da própria Uruguai, no inverno, ficava um tio de bigode que vendia amendoim doce, recém-tirado da panela, nuns pacotinhos brancos que queimavam a mão. Mais, ele aceitava vale-transporte, moeda paralela do centro de Porto Alegre. Por vezes, eu comprava dois pacotes, pensando já na manhã seguinte. Gelados, no entanto, perdiam boa parte de sua razão de ser, não toda, diga-se de passagem.
Um dia, o tio não apareceu mais, o Rosário me formou, o centro perdeu sua função. Mas nos dias antárticos, aquele bigode reluzente foi um verdadeiro farol. Hoje diriam que o tio estava na história para vilanescamente engordar ingênuos colegiais.