Dois dos "tipos" mais sedutores da dramaturgia, o perdedor e o vigarista encontraram em Better Call Saul e House of Cards duas de suas encarnações mais marcantes na assim chamada era de ouro da TV.
O primeiro, vivido por Bob Odenkirk, surgiu como um personagem secundário em Breaking Bad, um dos mais consistentes marcos dessa era, mas é uma figura tão interessante que ganhou sua própria série, na onda dos spin-offs, ou derivações. Ao longo de, até aqui, três temporadas e 30 episódios (o mais recente disponibilizado na última terça-feira na Netflix), tem detalhada sua descida ao inferno, que inclui a sabotagem do irmão, único familiar que lhe restou, e frustrações pessoais e profissionais em sequência, que vão culminar com a troca de identidade – de Jimmy McGill para o Saul Goodman referenciado no título.
O segundo é um vilão pomposo: Francis Underwood foi eleito pela Netflix o astro central daquela que talvez seja a sua produção mais pretensiosa (do ponto de vista dramatúrgico), além de ser encarnado por um ator oscarizado, Kevin Spacey, que carrega a aura das grandes estrelas de Hollywood e, ao mesmo tempo, a capacidade de parecer íntimo do espectador – não é à toa que os autores escolheram, em House of Cards, uma construção dramática pontuada por trechos "não ficcionais" nos quais ele conversa com a câmera, estabelecendo uma relação de cumplicidade com o público.
Uma característica de ambas as séries deixa claro se tratar de duas produções de alto nível: mesmo com esses protagonistas tão fortes, tanto numa quanto na outra saltam aos olhos personagens secundários potentes, o assessor para serviços sujos Mike (Jonathan Banks), no caso de Better Call Saul, e a primeira-dama charmosa e inescrupulosa Claire (Robin Wright), no de House of Cards. Os momentos de interação entre eles estão entre os pontos altos de cada produção – evidência dos grandes trabalhos de criação e composição dessas figuras e, ao mesmo tempo, atuação de quem as interpreta, conjunção possível apenas com uma direção de cena competente.
Se House of Cards(cuja quinta temporada foi disponibilizada há menos de um mês) tem essa característica de interação com o espectador, uma tradição do cinema não ficcional, Better Call Saultrabalha a fabulação de maneira mais deliberada, com uma fotografia recheada de filtros e sequências menos funcionais, por assim dizer, narrando episódios de histórias paralelas nem sempre imprescindíveis para entender o núcleo central da história, porém invariavelmente atrativas pelo tempero que impõem à leitura dos acontecimentos desse núcleo.
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A aproximação que este texto busca fazer, além de notar que seus protagonistas são dois gigantes da narrativa ficcional contemporânea, diz respeito ao atual momento atingido pelas duas séries. É possível, a partir das temporadas recém-findadas, entender que ambas representam duas vertentes muito comuns nesse formato seriado, cada vez mais prestigiado na indústria do audiovisual: a das séries que causam enorme impacto pelo que apresentam mas que, em função de um esticamento exagerado, perdem-se pelo caminho, e a daquelas que, contrário disso, parecem ter sua curva dramática planejada desde o início, tamanha fluência que demonstram conforme as questões levantadas vão sendo respondidas ao longo de sua exibição.
House of Cardsteria fechado com perfeição sua curva dramática se tivesse terminado após o fim da segunda temporada, quando Underwood chegou ao topo do poder na política norte-americana – tudo o que veio depois, embora faça sentido, e seja bem interessante (vai ser difícil ser desinteressante com esses personagens e suas trajetórias), mais parece um grande e desproporcional epílogo. Better Call Saul, em outro extremo, cada vez mais se aproxima da excelência de Breaking Bad no que diz respeito à capacidade de fechar com coerência as pontas abertas nos últimos anos.
É correto dizer que as duas séries atingiram seu ponto de maturação. Uma delas, no entanto, decaiu. E a outra segue, cada vez mais, instigante.
Não que as curvas dramáticas devam ser sempre semelhantes. O caso, em se tratando de narrativas seriadas de TV, é entender o formato sobre o qual se trabalha e dosar com equilíbrio os movimentos realizados, do início ao fim. É uma questão de forma. Ou de formato: assim como um longa ou um curta-metragem, uma série precisa ter o roteiro construído a partir de uma visão global de tudo o que vai apresentar ao espectador – mesmo que tenha duração maior.
É comum, quando uma produção é realizada por muitos anos, precisar conviver com enxertos e reviravoltas inesperadas – às vezes o mercado é implacável, que o digam as telenovelas brasileiras. Mas o bom resultado depende de que se lide com sabedoria com esse tipo de demanda.