Uma das coisas mais arriscadas de se fazer na vida adulta é reler uma história em quadrinhos que te marcou muito na infância ou na adolescência. Não raro, o sentimento é reverso: como é que eu gostava tanto disso? Confrontada com a experiência de vida do leitor, a obra perde o viço, suas virtudes esboroam-se, e o que era um tesouro da memória transforma-se em pobre souvenir de um tempo em que teus interesses eram outros – melhor dizendo, teu alcance era mais limitado. É por isso que muita gente prefere tratar como intocáveis essas lembranças, nunca mais voltando a acessar sua fonte, sob pena de não suportar o peso da decepção.
Eu tinha algum medo em relação a Homem-Aranha: A Última Caçada de Kraven (que você encontra na coleção preta de graphic novels da Salvat e em uma reedição pela Panini, com preços que variam de R$ 20 a R$ 40, dependendo da loja ou do amigo).
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Será que aquelas páginas causariam o impacto que deixaram no adolescente do comecinho dos anos 1990, quando a editora Abril publicou no Brasil? O que a HQ teria a oferecer ao adulto de hoje, para além de um título ribombante, antológico, e do poder de imagens inesquecíveis (pouparei de spoilers os incautos)?
Bem, a recompensa foi maior do que eu esperava.
Reencontrei – redescobri, na verdade – um tour de force de um autor que povoava meu armário de gibis: J.M. DeMatteis, um roteirista bastante eclético (compare Blood, uma História de Sangue a sua fase numa muito bem-humorada Liga da Justiça). Redescobri o traço e o dinamismo dos painéis do grande Mike Zeck (com a arte-final de Robert McLeod), aqui numa simbiose perfeita com o roteiro do DeMatteis.
A trama é por si só fascinante: para provar a seu inimigo e a si próprio que é superior, Kraven decide caçar o Aranha, enterrá-lo e substitui-lo. Só que DeMatteis extrapola, com uma prosa alucinante em um roteiro com múltiplas vozes: são narradores – de carne e osso, de corpo e alma – Kraven, o Aranha, Mary Jane e o pavoroso vilão Rattus. E, dentro dessas vozes, há mais vozes – poucas vezes um roteirista de super-heróis foi tão inteligente e preciso em retratar o delírio, a angústia, a obsessão. As fortes cenas se fazem acompanhar por invejáveis monólogos interiores (vide a entrada de Peter Parker na HQ, no velório de um bandidozinho, vide um Kraven piradaço recitando\recriando o poema Tiger, Tiger, de William Blake). Mas, talvez, nada seja mais marcante do que o leitmotiv empregado por DeMatteis: "Esta noite", a frase que fica ressoando ao longo da história – e que, agora me ocorre, me remeteu a outro grande caçador da cultura pop: "This is the night", mais de uma vez Dexter Morgan pensou enquanto dirigia pelas ruas de sua Miami.
Enfim: cace o seu exemplar por aí.
"Eu sou Kraven..."