Por Willian Silveira
Crítico de cinema, editor da revista Sétima
Há várias maneiras de sobreviver em Hollywood – desde que não se dê prejuízo. Parece improvável, portanto, que um aspirante a veterinário possa se tornar cineasta, manter carreira por quatro décadas, ser premiado inúmeras vezes – inclusive com Oscar – e se transformar em sinônimo de competência e emoção para a indústria norte-americana.
Falecido na semana passada, aos 73 anos, Jonathan Demme chegou aos estúdios pela inaptidão para a química, na Universidade da Flórida, e pela fé de Roger Corman. Realizador pouco memorável, Corman é mais conhecido por tornar rentáveis projetos de baixo orçamento e apostar em jovens diretores, como foi com Scorsese e Coppola. Não foi diferente com Demme.
Contratado como assessor de imprensa por Joseph Levine, após o produtor se impressionar com as suas resenhas no jornal da faculdade, Demme conheceria Corman em Londres, durante as filmagens de Águias em Duelo (1971). Às vésperas de inaugurar a New World Pictures e precisando encorpar o time de roteiristas, o dono da produtora responsável por distribuir Bergman e Fellini nos EUA não hesitou. Se você pode escrever para eles, pode escrever para mim, teria dito. Assim, com uma proposta lógica e nada sedutora, o jovem entraria de cabeça no mundo dos filmes B.
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Demme estreou como roteirista e produtor em Angels Hard as They Come (1971), ao escrever um longa sobre motocicletas, primeiro dos vários desafios no gênero. Adiante, o apelativo Celas em Chamas (1974) seria o seu primeiro trabalho na direção. O entretenimento fácil não entusiasmava, mas Demme sentia-se escolhido. Por ter recebido a chance de fazer cinema sem percorrer o caminho tradicional, das faculdades e inúmeras figurações, via-se na obrigação de retribuir. Se houvesse uma história, então lá estaria, independentemente das condições. Fazer o melhor era importante. Não havia espaço para a vaidade da autoria. Nas Ondas do Rádio (1977) selou o fim da parceria com Corman, deixando-o livre para buscar um estilo próprio.
Os anos 1980 foram prolíficos e experimentais, tendo em Melvin e Howard e Totalmente Selvagem os melhores exemplos do período. Os filmes evidenciam um realizador versátil, competente na transição entre cômico e dramático, talentoso na composição de atmosferas e na criação de personagens de fácil identificação. Formalmente, Demme dialogou com o que lhe era familiar: a televisão e o cinema clássico americano. Atualizados em aventuras urbanas, Raoul Walsh e John Ford têm a proposta de não deixar a câmera descansar e o público se desinteressar. Movimento e novidade. Máximas presentes também na primeira incursão ao documentário, Stop Making Sense (1984), que captura os Talkings Heads e revela não apenas o arrojado domínio artístico do diretor, bem como o apreço pela fusão de som e imagem.
No início dos 1990, a facilidade em contar histórias e os temas populares faziam de Demme o realizador mais acessível da sua geração. Pelo menos em teoria, pois a aprovação da crítica não impulsionava a bilheteria. Demme chegou a considerar que estava fazendo tudo errado. Tomado pela dúvida, arriscou. Apostou no alto contraste, na luz dura e nos close-ups em O Silêncio dos Inocentes (1991), o encontro de uma agente do FBI (Jodie Foster) e um serial killer (Anthony Hopkins), um dos melhores thrillers já realizados. A câmera subjetiva de Fuller e Hitchcock rendeu-lhe um Oscar e deu fôlego à carreira. Na sequência, Filadélfia denunciou o preconceito aos portadores de HIV. Um filme diferente mas igualmente icônico. Outro sucesso.
O reconhecimento do público não acomodou o diretor, que perambulou entre ficção, documentário, televisão e videoclipe até o final do ano passado, quando decidiu passar mais tempo com a família. O Casamento de Rachel (2008) ainda merece mais atenção. Na paisagem atual, as influencias ecoam na iluminação de Paul Thomas Anderson, na simetria de Wes Anderson, e no naturalismo de Alexander Payne. Empenhado em contar histórias envolventes e significativas, Jonathan Demme priorizou a emoção. Em seus melhores trabalhos, os filmes se diluem para além do cinema, como que preparados para nos acompanhar na vida.