Nos últimos dias, as obras de arte pública voltaram a ser assunto. O motivo: a reaparição do monumento em forma de leão instalado num importante cruzamento da cidade de Porto Alegre. Com 2,10m de altura, de concreto multicolorido e em majestosa imponência, a escultura do felino – que já havia sido tópico de discussão entre os cidadãos porto-alegrenses – voltou a "causar".
Não fugindo à regra do curioso fenômeno de transladação que acomete os monumentos públicos em nossa cidade – que pelos mais diversos motivos mudam de local – , a estátua que havia surgido, semanas atrás, nas proximidades da Avenida Bento Gonçalves com a Avenida Aparício Borges reapareceu na esquina da Bento com a Avenida Santana. Por conta das obras do Viaduto São Jorge, o rei dos animais foi aventurar-se por outras savanas. Figura bastante comum em jardins onde vive ao lado de anões, Brancas de Neve e cogumelos gigantes, o leão agora reina solitário na Praça Jaime Telles, no bairro Farroupilha.
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Se outrora sua origem intrigava o público, pelo menos, agora, parte do mistério está resolvido. Emplacado e intitulado "Obelisco Leonístico", a efeméride faz homenagem aos 50 anos do Lions Club de Porto Alegre Bento Gonçalves. Todavia, o que continua se explicação são as razões que levaram à sua instalação no espaço público.
Intrigando o público e dividindo opiniões entre a comunidade artística e demais entendedores do assunto, é inegável o quanto sua existência mobiliza nosso olhar para pensarmos a arte pública, o entorno e nossos espaços compartilhados. Se por um lado o monumento leonístico põe em xeque noções sobre bom gosto e sobre as formas de ocupação e presença de obras de arte no espaço público, por outro mostra o quanto a gestão pública municipal funciona de forma precária, desarticulada e descontrolada. Isto, sim, é um problema, visto que existem profissionais especializados e setores públicos responsáveis por tal demanda que não conseguem realizar as ações de controle, avaliação e manutenção das obras de arte pública da cidade.
Porto Alegre possui uma Comissão de Avaliação de Obras de Arte ligada à Secretaria Municipal de Cultura, que reúne artistas e profissionais selecionados e qualificados para lidar com essa temática e que, neste caso, sequer foi notificada. Instituída em 2015, a Comissão tem por finalidade assessorar a administração pública em todos os assuntos relacionados à instalação de obras artísticas no espaço urbano. Todavia, mais uma vez, toda essa expertise foi desconsiderada e desprestigiada.
O problema do leão não é sua breguice ou aparente "falta de qualidade". Muito menos que seja feito de cimento policromado e que tenha vindo de uma loja de enfeites pré-fabricados de jardim. Pois, a partir dos readymades do artista francês Marcel Duchamp, há mais de 100 anos a arte está, também, relacionada à atribuição de novos sentidos às coisas do mundo. O procedimento da apropriação de elementos, imagens e objetos pré-existentes foi incorporada, indiscutivelmente, ao mundo da arte. Superando as habilidades do fazer manual, a inventividade do artista passou a ser relacionada à re-significação de sentidos às coisas da vida.
A selva de pedra também é um espaço de disputas – sejam políticas, discursivas, ideológicas, sociais, etc. Controverso, a instalação da escultura ao bel prazer de alguns grupos ou forma descontrolada, reafirma caprichos e noções de poder. Entretanto, a escultura está lá ocupando um lugar. Talvez diferente de alguns artistas contemporâneos que promovem intencionalmente deslocamentos físicos e de sentidos a objetos cotidianos que passam à obras de arte, o leão de cimento cumpriu um papel: reativou o nosso olhar àquilo que nos cerca e aquilo que atribuímos valor. Grotesco ou não, o "Obelisco Leonístico" está lá ocupando espaço e sendo um legítimo dispositivo de novos sentidos.
*Sandro Ka é artista visual e doutorando em Poéticas Visuais (PPGAV/UFRGS).