Se a carreira musical como vocalista da banda Midnight Oil rendeu ao australiano Peter Garrett turnês mundiais, vendas na casa dos 12 milhões de discos e fama de rockstar, o último grande papel foi na política. O careca de quase dois metros de altura e aparência surpreendentemente jovial para um homem de 63 anos começou no parlamento da Austrália em 2004, passou pelo Ministério de Ambiente, Patrimônio e Artes entre 2007 e 2010 e teve seu capítulo mais recente no Ministério da Educação, da Infância e da Juventude, de 2010 a 2013 – em grande parte do tempo ao lado do Partido Trabalhista daquele país.
– A música pode servir de trilha sonora, mas são as pessoas que fazem a mudança – diz o músico, ativista e ex-político, que em cima do palco também deixa claras suas posições referentes ao aquecimento global, à situação dos aborígenes australianos e à guerra: – Artistas podem estimular essas mudanças, mas elas têm de acontecer por meio dos políticos que as põem em prática. E estou falando de políticos em todos os sentidos. Organizações locais, grupos escolares, ONGs, o parlamento...
De volta à ativa após quase 15 anos, a banda reuniu sua formação original e resolveu sair em turnê. A primeira cidade fora da Austrália será Porto Alegre, no dia 25 de abril, no Pepsi On Stage. Garrett, que em 2016 lançou seu primeiro disco solo, A Version of Now, garante que o tempo parado não afetou a naturalidade do Midnight Oil – e ressalta que as músicas de protesto se mantêm atuais. Nesta entrevista (feita a partir de sugestão do leitor Gustavo Paganotto), ele fala sobre aquecimento global, desastres como o de Mariana e a eleição de Trump, entre outros assuntos.
Depois de quase 15 anos, o Midnight Oil volta à ativa. Por que esse retorno após tanto tempo?
É inesperado nos encontrarmos fazendo uma turnê deste tamanho hoje em dia, apesar de ninguém na banda ter parado de tocar. Todo mundo se manteve muito ativo musicalmente, alguns membros tiveram diferentes bandas e, mesmo que eu tenha passado um tempo atuando no governo socialdemocrata da Austrália, meu coração musical continuou batendo. Ainda assim, nenhum de nós sabia se iríamos tocar juntos de novo ou não. Mas, no exato momento em que nos encontramos, tivemos um tempo juntos, entramos em uma sala e começamos a ligar as guitarras, a sentir o mesmo ritmo firme que a banda sempre teve, ficou claro que, se quiséssemos, poderíamos sair naquele momento e tocar para nosso público. Essa é a primeira parte da resposta, e a segunda parte tem a ver com o Brasil: um dos melhores momentos de nossas turnês antigas sempre foi tocar no Brasil. Teve um grande impacto em nós, tanto como indivíduos quanto como músicos, e eu estou sempre encontrando viajantes brasileiros que vêm para a Austrália surfar ou fazer qualquer coisa, e eles sempre falam "voltem a tocar no Brasil, por favor". E isso é muito legal. Uma vez que decidimos que íamos tocar em lugares além da Austrália, isso logicamente significou voltar para o Brasil.
O único país em que vocês vão tocar na América do Sul é o Brasil, e são cinco shows por aqui. O que há de especial conosco?
Tem muito a ver com o caráter do povo. Em qualquer país do mundo, você consegue se comunicar de forma próxima com as pessoas, já que vivemos todos no mesmo mundo. Mas, ao mesmo tempo, é verdade que diferentes países têm diferentes características, e nós achamos a exuberância, a hospitalidade, a qualidade musical e a intensidade das experiências brasileiras muito estimulantes e muito fascinantes, principalmente para pessoas que vêm de um país que, em sua forma moderna, tem toda uma influência inglesa. Obviamente, no início éramos um povo indígena, mas grande parte do nosso povo é essencialmente descendente de ingleses, irlandeses ou europeus. Esse background é muito certinho, muito "papai e mamãe", enquanto o background brasileiro é muito temperado, apimentado.
Você disse que sentiu a mesma energia de 15 anos atrás quando voltou ao estúdio com a banda, mas me parece que a arte, em especial as músicas do Midnight Oil, sofre muita influência da época em que é feita. Você acha as coisas que vocês cantavam e tocavam ainda atuais?
Concordo que a música depende de seu tempo, e o Midnight Oil sempre escreveu da maneira mais direta que conseguíamos sobre o seu tempo. É bastante impressionante descobrir agora que as palavras e algumas das músicas foram escritas muito mais para hoje do que para antes.
Ainda que as músicas do Midnight Oil, que você considera atuais, falem sobre problemas e aspectos negativos do mundo – como Beds Are Burning, que aborda a situação dos povos nativos da Austrália, ou Put Down That Weapon, que critica a guerra – você parece bastante otimista. Você acha que o mundo melhorou?
Não acredito que as coisas sejam tão lineares. O que quero dizer é que não acredito que a vida, a história, o progresso andem de maneira reta. É um vaivém. Acho que funciona como um rio, que sobe, desce, acelera e diminui seu ritmo de acordo com diversas influências externas. As coisas só andam em uma direção saudável se as pessoas colocam suas almas naquilo, se estão envolvidas e organizadas, falando, fazendo música, trabalhando nas ruas, construindo comunidades, seja o que for. As conquistas da história humana, as coisas positivas que nós alcançamos, no longo prazo, foram ganhas por pessoas sendo ativas, e não passivas. Olhando no curto prazo, como hoje, nós podemos falar "tem algo terrível aqui, tem algo terrível lá", mas isso significa que tudo está terrível? Claro que não. Isso significa que, neste momento da nossa história, temos mais trabalho a fazer.
E você acha que tais coisas terríveis têm acontecido com mais frequência atualmente?
Acho que não mudou muito. Sempre foi uma luta e, de certa forma, nós, por causa da comunicação moderna, da mídia, da internet, podemos ver mais o que está acontecendo. A mídia sempre apresenta o lado ruim, nós nunca vemos o lado bom. Se olharmos para algo como a pobreza mundial, diríamos que está bom. Melhorou em relação a 15 ou 20 anos atrás. Se olharmos para a educação, posso entender que, globalmente, está bom. Não está perfeito, tem muitas coisas a melhorar, mas é muito melhor do que era. Você tem de construir as mudanças a partir dessas pequenas vitórias.
Além de sua atuação como ministro do Ambiente, você trabalhou como ministro da Educação e da Juventude. Em relação aos aspectos que discutíamos anteriormente, você considera as novas gerações mais atentas e preocupadas do que as gerações antigas?
Sim. É um grande e definitivo "sim", mas posso aprofundar: em parte, no que diz respeito a mudanças climáticas e aquecimento global, é uma questão que está melhor entendida, há mais comunicação sobre o assunto. As mentes e os corações jovens tendem a ver as coisas com mais clareza e não esmorecem diante de desafios. Eles ainda não precisam lidar com a vida adulta, com uma família, com o nascimento de um filho... E a segunda razão é a educação. Porque, se você municia pessoas com fatos, com conhecimento, com habilidades, elas estarão melhor equipadas, em qualquer país ou cidade, para combater os problemas.
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Sob esse ponto de vista, como você explica a eleição nos Estados Unidos de Donald Trump, que, entre outras coisas, costuma negar o aquecimento global?
Ele tem essas atitudes loucas e perigosas, mas é uma das poucas pessoas em posição de poder que mantém essa visão. Mesmo líderes conservadores em outros países, ou na China como um todo, um Estado onde há só um partido, a questão do aquecimento global está sendo aceita, e esses líderes estão tomando atitudes quanto a isso. A eleição de Donald Trump é a manifestação de algo que acontece particularmente nos EUA e é difícil de explicar. Mas, por outro lado, bastante fácil de entender. Em parte, o sistema político deles, como diversos outros, ainda é bastante comprometido pela influência de dinheiro e recursos poderosos, enquanto, ao mesmo tempo, o sistema econômico deles não promove uma distribuição justa e apropriada de dinheiro para o povo. Nos EUA, talvez mais do que em outros países, pelo menos mais do que a Austrália, muito poucos membros de grupos muito ricos têm a maior parte do dinheiro, enquanto muitos membros de grupos mais pobres têm uma parte muito pequena do dinheiro – então as pessoas nessa situação sentem que a política convencional as deixou na mão. Soa bem a ideia de uma pessoa que aparenta ser forte, aparenta ter respostas, mesmo que elas não façam o menor sentido. É uma piada cruel, que é baseada em medo e desastre, mas acho que é parte da explicação.
Durante grande parte de sua carreira política, você foi filiado ao Labor Party, o partido trabalhista da Austrália. O Partido dos Trabalhadores brasileiro teve quatro mandatos presidenciais, e o último foi interrompido por um impeachment. Fala-se muito em uma guinada à direita acontecendo globalmente. Você considera que parte da explicação para esse fenômeno pode ter a ver com problemas da própria esquerda em resolver problemas enquanto esteve no poder?
É uma boa pergunta, e eu não acho que ela tenha uma resposta simples. Em alguns lugares, acho que a resposta é sim. Em outros, acho que a resposta tem mais a ver com o que podemos descrever como neoliberalismo. O neoliberalismo não foi reformulado substancialmente por forças progressistas de esquerda. Nos EUA, a esquerda optou por desviar seu caminho e apostar na política de identidade: passaram a se preocupar em demasia com questões de gênero, feminismo, cultura. Não estou dizendo que essas questões não são importantes, elas são, mas acho que se perdeu de vista a questão mais importante, que tem a ver com igualdade, equidade e justiça. Se as pessoas sentem que o sistema falha, elas seguem para outra direção. Os partidos de esquerda têm a responsabilidade de promover reformas no que diz respeito a impostos, a investimentos, a benefícios. Se os partidos têm elementos de corrupção, são fracos enquanto governo, se parecem querer estar no poder apenas pelo poder, eles falham.
É um discurso que parece se encaixar na realidade brasileira.
Acho que esses padrões não são exclusivos de um país ou outro. Outra coisa é que, para cidadãos normais e pessoas que querem contribuir para questões que consideram importantes, é crucial não perder a fé. Me arrisquei na política, e algumas partes foram difíceis e feias, outras partes foram ok, mas outras partes foram boas. Ainda assim, tenho metade do país que não gosta de mim. Quando você é um músico, é mais fácil: todo mundo gosta de você (risos).
Mas qual é a maneira mais produtiva de promover mudanças: a política ou a música?
Nenhum é mais poderoso do que o outro, cada um tem seu papel. Se você quer mudar o sistema de impostos, se você quer leis fortes para proteger o ambiente, se você quer ter certeza de que haja um sistema de saúde público eficiente, você precisa de políticos. São as pessoas que fazem as mudanças, e não ritmos. Não é um samba, um banjo ou uma guitarra... Mas – e um "mas" com M, A e S maiúsculos – a música é a trilha sonora, a estrada para a mudança política e social, e às vezes é a música que leva as pessoas para um estado diferente, para um estado em que são melhores e mais fortes. São pessoas que fazem a mudança, os músicos podem estimular essas mudanças, mas essas mudanças têm que acontecer por meio dos políticos, que as põem em prática. E estou falando de políticos em todos os formatos e maneiras. Estou falando de organizações locais, grupos escolares, ONGs, o parlamento, a palavra que você quiser usar...
Observando sua preocupação e sua atuação, fica a impressão de que temas brasileiros, como o desmatamento da Floresta Amazônica, recebem mais atenção da comunidade internacional do que dos governos nacionais.
Não acompanhei a situação da Floresta Amazônica de perto nos últimos anos, então não me sinto atualizado para falar sobre isso de forma mais profunda, mas, da última vez que olhei de perto, algumas áreas haviam sido reservadas para conservação e para parques, mas ainda havia muita atividade de desmatamento. Acho que a grande questão sobre a Floresta Amazônica é a mesma de florestas tropicais no geral, tanto na América do Sul, quanto no Sudeste Asiático, em particular. É muito importante que as regulações sejam cumpridas e fiscalizadas estritamente, porque nossa atmosfera depende das florestas tropicais de uma maneira muito importante. Olhe para o caso de Mariana: não sei o quanto se discute sobre desmatamento e seus impactos no Brasil, mas na Austrália e no Sudeste Asiático isso causa um impacto gigante e faz tudo ficar mais difícil. Faz, no fim das contas, as pessoas ficarem mais pobres. Ao mesmo tempo, acho que o Brasil foi uma voz muito forte nas negociações acerca do aquecimento global e das mudanças climáticas, buscando ações dos países desenvolvidos – bem, vocês são países desenvolvidos em diversos aspectos, atualmente... Mas foi de fato a pressão das economias em desenvolvimento que causou as primeiras grandes soluções para a crise climática.
Você falou rapidamente sobre o desastre de Mariana. Que lições um país do tamanho do Brasil pode tirar desse acontecimento?
Só posso falar profundamente de situações que aconteceram em meu país, ou coisas parecidas com as que aconteceram em meu país. Em primeiro lugar, quem é responsável precisa assumir essa responsabilidade e pagar por isso. Em segundo lugar, precisa ser feita uma investigação séria e comprometida, para que se mudem as coisas que levaram ao desastre. Por exemplo: na Austrália, quando tivemos desastres muito sérios relativos a queimadas, passou a se cumprir um planejamento. Foram descobertas negligências por conselhos locais, pessoas haviam obtido permissão para construir casas muito perto das florestas. Ou seja, você precisa de regulações sérias, que protejam as pessoas no futuro.
Da última vez que o Midnight Oil esteve no Brasil, o rock era talvez o gênero musical mais popular no mundo e no país, situação que atualmente não se repete. Como vocalista de uma banda de rock que está voltando à ativa, isso preocupa?
Acho que a música está sempre mudando e evoluindo, nunca é estática. Isso é o que me encanta na música. Mas, no fim das contas, para mim, não é sobre ser rock, dance, hip-hop ou qualquer outra coisa, é sobre a essência da música que você está tocando. Se não mexe com você, não vai mexer com as pessoas para quem você está tocando. Você gostaria de tocá-la de pé em uma esquina? Então você vai gostar de tocá-la em um estádio. É uma linguagem universal, que funciona para todos nós, mas você está certo: de certa forma, nós somos uma banda de rock. Por outro lado, no entanto, somos só um grupo de músicos visitando um país que ama música. Por isso, tenho certeza que vamos nos divertir muito no Brasil novamente.
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Letras politizadas
No ritmo do surf rock, o Midnight Oil cantou sobre temas políticos, sociais e ambientais:
Beds are Burning – Música mais famosa do Midnight Oil, fala sobre devolver terras nativas para grupos aborígenes. Curiosamente (ou propositalmente), o disco que traz esta faixa, Diesel and Dust, foi lançado poucos meses antes do bicentenário da chegada dos primeiros navios britânicos (os colonizadores) à Austrália – considerada a data mais importante do calendário nacional.
Blue Sky Mining – A canção se refere à mina de amianto Wittenoom, na Austrália Ocidental, onde era explorada uma reserva de amianto azul, entre 1947 e 1966. Antes próspero, o local agora parece uma cidade-fantasma, e acredita-se que mais de 2 mil pessoas que trabalharam por lá já morreram de doenças causadas pela exposição à substância.
River Runs Red – "Vocês cortaram todas as árvores, envenenaram o céu e o mar, tiraram tudo de bom que havia no solo." Assim começa a canção que denuncia como os humanos estão destruindo o ambiente em nome da ganância.
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A atuação como ministro
Alçado ao cargo de ministro do Ambiente, Patrimônio e Artes em 2007, Peter Garrett decepcionou fãs ao, aparentemente, abandonar algumas de suas crenças sobre ambientalismo. Talvez sua atitude mais marcante no poder tenha sido a de aprovar a expansão de uma mina de urânio – logo ele, que pregava o desarmamento nuclear. Alguns comentaristas da imprensa, porém, ponderavam que, dentro do Partido Trabalhista, Garrett precisava "trabalhar em equipe".
Em 2010, ele foi removido de seu posto pelo primeiro-ministro Kevin Rudd depois que um programa governamental que promovia isolamento térmico em residências causou a morte de quatro instaladores e cerca de 200 incêndios em casas. Mais tarde, Garrett alegou que Rudd não teria dado crédito a suas preocupações sobre a segurança do esquema.
Ainda em 2010, no governo de Julia Gillard, ele foi nomeado ministro de Educação, Infância e Juventude. Uma de suas principais ações desagradou justamente a quem ele tanto defendia quando músico: a população indígena. Tratava-se de uma medida que suspendia por três meses o pagamento de um benefício social aos pais de crianças indígenas que faltassem ou não estivessem frequentando escolas. Garrett renunciou em 2013, quando Rudd voltou ao poder.