Escrevo de um quarto de hotel em São Paulo, apenas horas depois de saber do falecimento de João Gilberto Noll. Não tenho à mão seus livros, o que me impede de citar algumas de suas frases tensas e poéticas, que me fazem pensar agora em panos torcidos com firmeza, úmidos de beleza e angústia. Mas posso evocar com nitidez os sentimentos que sua literatura me causou: assombro diante da condição humana, ternura, solidariedade entre solidões, as delícias e os horrores de possuir um corpo, os encantos renovados da linguagem trabalhada com dedicação.
Li as primeiras obras do Noll na adolescência. Comecei com A Fúria do Corpo, um romance cuja visceralidade me atropelou no melhor dos sentidos. A seguir, com Rastros de Verão, conheci melhor seus protagonistas sem nome e sua visão particular de Porto Alegre – ele foi um dos grandes escritores que enriqueceram a identidade literária da cidade.
A influência dessa visão está em minha novela Até o Dia em que o Cão Morreu, para a qual Noll topou escrever um texto de orelha em 2002.
Não foi o primeiro gosto que tive de sua conhecida generosidade com leitores e colegas de profissão, em especial com os autores iniciantes. Em 2001, com Guilherme Pilla e Daniel Pellizzari, criei uma editora independente e por ela publiquei meu primeiro livro. Noll apareceu no evento de lançamento para pegar o autógrafo do exemplar que eu havia lhe enviado pelo correio. Se hoje isso não me surpreende, na ocasião foi como receber a visita impensável de uma criatura mítica. Ele entrou no Garagem Hermética sorrateiramente, com um gorro na cabeça, e foi embora em instantes.
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O que mais me afeta na prosa de Noll é a constância de suas indagações íntimas e metafísicas, a ânsia de converter em palavras o embate entre a introspecção e o mundo que, tragicamente, parece estar sempre "lá fora". No mundo exterior dilacerado, fosse ele Porto Alegre, o fictício país em guerra de A Céu Aberto ou a Londres de Lorde, os acenos e afagos eram o contraponto ao ódio e à incompreensão. Em nossos tempos de crescente polarização política e recrudescimento da intolerância às diferenças, a literatura de Noll tem relevância ao nos lembrar que o ser humano floresce na comunhão – muitas vezes árdua – com o outro.
Nos bate-papos e palestras dos últimos anos, ele gostava de dizer que tinha um único personagem, que chamava de "este homem". Este homem que vagava, angustiado, em busca de transcendência e afeto. Este homem não era ele. Este homem era ele. A ambiguidade era magnífica e ele a desenvolvia como ninguém. Suas leituras se tornaram performances marcantes, com uma entonação característica, inimitável, que tirava os ouvintes da zona de conforto.
Acho que seria inapropriado dizer que éramos amigos. Nunca nos divertimos juntos e eu nada sabia de sua vida pessoal. Nosso contato era esporádico. Uma vez, quando me enviou o manuscrito de Berkeley em Bellagio para uma leitura crítica, minha demora de alguns dias para responder resultou numa mensagem cheia de ira e impropérios. Uma semana depois, veio a doce mensagem de desculpas. A partir de então nossos encontros ocorreram em eventos literários ou na rua, por acaso. Esses últimos deixaram em mim uma impressão fortíssima.
Algumas vezes cruzei com Noll pelas ruas de bairros como Santana e Bom Fim. Em todas essas ocasiões, estávamos sozinhos. Ele sempre alegava estar andando sem rumo, passeando. Falávamos de nossos livros mais recentes e das obras em progresso. Os silêncios eram enormes e nos despedíamos em poucos minutos. Outros encontros ocorreram na entrada ou saída de sessões de cinema no meio da tarde, daquelas que se escolhe justamente porque estarão vazias. Ao longo dos anos, foi ficando clara para mim a afinidade de nossas relações particulares com a solidão e a quietude. Gosto de acreditar que ele sentia o mesmo.
Uma vez fui ver o filme Faces, de John Cassavetes, numa sessão à tarde na Sala Redenção. Cheguei cedo de propósito, para pensar na vida tomando um café no Bar do Antônio. Ao entrar, lá estava Noll, sozinho em uma mesa, com um abismo metafísico em torno de si. Tomamos juntos nosso café ruim, conversando pausadamente. A sessão estava vazia. Sentamos lado a lado na terceira fileira, que ele disse também ser sua favorita. Nos despedimos depois com um aperto no ombro e poucas palavras. Guardo a lembrança daquela tarde como nosso momento mais íntimo.
Conversamos pela última vez no seu aniversário de 70 anos na Aldeia, espaço onde vinha ministrando uma oficina de contos. Levei comigo meu exemplar surrado de A Fúria do Corpo para ele autografar. Há umas duas semanas, eu o avistei cruzando a rua João Telles e entrando em um bar. Talvez ele tenha olhado para mim, não tive certeza. Eu estava a uma certa distância, levando uma bicicleta, um cachorro e sacolas de compras. Ao passar na frente do bar, olhei dentro e o vi sentado sozinho em uma mesa do fundo. Ele me viu dessa vez, tenho certeza. Não entrei para falar com ele. Ao receber a notícia de sua morte, lembrei disso e me arrependi. Mas talvez ele tenha apreciado a minha não abordagem. Acho que nos entendíamos. Pensando agora, creio que sim, fomos amigos.