Para um porto-alegrense fã de metal em meados dos anos 1980, sábado era dia de maldade: trocava recortes de fotos e reportagens de bandas na loja de discos Megaforce, além de gravar fitas K7 de LPs importados. À tardinha, partia para a Osvaldo Aranha e perambulava por bares como Escaler, Lancheria do Parque e, principalmente, o Bar do João. Os amantes do gênero circulavam à noite pelo Bom Fim até os bares fecharem – aliás, era uma época mais segura para circular nas ruas. Havia quem madrugasse ou dormisse em praça, esperando amanhecer para pegar um ônibus e voltar à Região Metropolitana.
Os headbangers, como gostam de se denominar, também frequentavam a igreja. Não necessariamente para rezar: no porão da Paróquia Nossa Senhora da Glória, eram realizados ensaios de bandas como Sacrario e Gladiator, que aglutinavam fãs e, às vezes, concorriam com as missas. Na época, o som pesado do Rio Grande do Sul era defendido por bandas como Panic, Leviaethan, Pesadelo, Astaroth, entre outras.
Leia mais:
Feira do rock: autores lançam livros sobre Engenheiros do Hawaii, Nenhum de Nós e Jupiter Apple
Rock gaúcho ganha força com a criação de selos independentes
Cachorro Grande celebra 10 anos de "Pista livre" com show e anuncia novo disco de inéditas
Em depoimentos à Zero Hora, integrantes daquela geração de headbangers recuperam três cenários da época, a Megaforce, o Bar do João e a Igreja da Glória, que ajudaram a fomentar a cena heavy metal na Capital nos anos 1980 – pavimentando o caminho para bandas contemporâneas como Krisiun, Scelerata, Distraught e Hibria.
>>> O formato desta reportagem, uma colagem de depoimentos, presta homenagem ao clássico livro Mate-Me Por Favor, a história do punk nos anos 1960 e 1970 em Nova York, por Legs McNeil e Gillian McCain
BAR DO JOÃO
O quartel-general
Fundado em 1946 e encerrado em 2003, o Bar do João, na Osvaldo Aranha, abrigava diferentes tribos, como punks e hippies, mas os frequentadores da cena pesada faziam de lá seu quartel general nos anos 1980 e 1990. Era tanta gente que os cabeludos se espalhavam pelo lado de fora. O bar promovia seus próprios shows de heavy metal, principalmente da Crossfire, banda da casa durante anos.
Júlio Leite, proprietário a partir de 1979 e até o seu final, descreveu assim sua relação com a clientela no livro Gauleses Irredutíveis - Causos e Atitudes do Rock Gaúcho (de Allison Avila, Cristiano Bastos e Eduardo Müller): “É uma espécie de clube, como aqueles que conheci no Interior. É mais do que um bar.”
Em 2003, o bar foi atingido por uma retroescavadeira que demolia o prédio do cinema Baltimore. Por conta das estruturas comprometidas, fechou. Hoje, no lugar se ergue um edifício de escritórios. Abaixo, o baú das recordações:
Alexandre Nascimento, comerciante, 49 anos: "Sábados e domingos a galera se encontrava no Bar do João. Todo mundo chegava com a sua camiseta de banda, um querendo aparecer mais do que o outro".
Sfinge Lima, músico, baixista da Crossfire, 46 anos: "Em um mesmo dia, no bar, falávamos com os punks e depois com o Nei Lisboa. Ia todo mundo com ou sem tribo. Era um lugar onde tu podias ser tu mesmo: cabeludão com camiseta de heavy metal".
Celso Ávila Esmeraldino, professor de história, 49 anos: "Qualquer um que chegava com camisa preta era muito bem recebido".
Ivan Santos, publicitário e guitarrista da Gladiator, 42 anos: "Era um ambiente bem de boteco: tinha um balcão na lateral da entrada, algumas mesas, um banheiro nos fundos".
Jefferson Witt Moraes, administrador de empresas, 45 anos: "No Bar do João, tinha todas as tribos: metal, punk, skinhead, bicho-grilo, hippie e rockers. Os caras do bar eram bastante pacientes. Aquele bando de maloqueiros lá, e eles sempre de boa. Era uma fauna".
Sfinge Lima: "Tinha um cara no Bar do João que costumava botar a mão para as mulheres pisarem. Era muito louco. Ele ficava sempre sentado na escada. Foi carinhosamente batizado como 'mãozinha'. Quando passava uma mulher, ele botava a mão para pisarem".
André Meyer, empresário e vocalista da Distraught, 46 anos: "Havia aquelas cachaças curtidas dentro de vidros nos quais tu escolhias qual seria o suicídio da noite".
Flávio Soares Coutinho, baixista e vocalista da Leviaethan, 51 anos: "O bar tinha uma parede cheia de vidros, vidros grandes de bala ou que têm ovo em conserva, com cachaças diversas: com tijolo, prego, morcego, cobra, rato, boneco do Teletubbies, enfim".
Jacques Maciel, vocalista e guitarrista da Rosa Tattooada, 47 anos: "Tinha uma cachaça com um microfone dentro do vidro!"
Sfinge Lima: "Júlio Leite era um visionário do underground. Fez coisas que ninguém faria na época. Meteu um palcão com a nossa banda Crossfire tocando metal de graça para a galera entrar e se divertir. A casa estava sempre cheia, todo mundo sabia as músicas. Tocávamos covers de bandas como Black Sabbath, Deep Purple, Iron Maiden, Kiss, seguindo essa linha de classic rock setentão. Nos apresentamos lá durante cinco anos, de sexta a domingo, direto".
Álvaro Bussons Borges, funcionário público e músico, 48 anos: "Quando a Crossfire tocava , o lugar ficava tão cheio que a gente não conseguia entrar nem pra comprar bebida”.
Mara Bitello, técnica em enfermagem, 48 anos: "Lembro que levei a fita do disco Youthanasia, do Megadeth, para o Júlio. Ele colocou a rodar trocentas vezes. Era lavagem cerebral!"
André Meyer: "Seguido a BM entrava procurando drogas e todos iam pra parede. Tendo cabelo comprido, bastava andar na rua à noite que éramos abordados. Cheguei a tomar três atraques em uma só noite. Tínhamos medo da polícia porque muitas vezes abusava na violência. Porém, não havia tanta insegurança como hoje, pois dormíamos no relento, na Redenção, e tudo certo. Éramos vistos como marginais da sociedade. Cabelos compridos naquela época eram encarados de uma maneira diferente de hoje, calças rasgadas não eram moda, além dos cintos de balas de fuzil, dos braceletes com spikes e das jaquetas de couro com colete jeans por cima. Achavam esse visual estranho, talvez ridículo, mas nós queríamos era isso mesmo: chocar".
Mara: "As pessoas nos olhavam e saíam correndo para o outro lado da rua. Hoje, nós saímos entre uns oito e até as beatas vem nos entregar santinhos".
MEGAFORCE
A rede social ao vivo e a cores
Meca dos headbangers porto-alegrenses, a loja de discos Megaforce foi inaugurada em 1984. Ocupando dois pisos do Centro Comercial Independência, foi o primeiro estabelecimento do Rio Grande do Sul especializado em heavy metal. Graças a Ademir Kessler, o proprietário (e seu sócio Jefferson Bellio), os fãs do gênero obtinham novidades. Era ali que chegavam discos importados de bandas que nenhum outro estabelecimento vendia na época. Ademir também gravava LPs em fitas K7, propagando o gênero entre os porto-alegrenses. Logo a Megaforce passou a ser ponto de encontro. Havia quem viajasse do Interior para adquirir os lançamentos e trocar fotos e artigos de revistas de suas bandas favoritas. Tempos pré-internet. Aliás, a concorrência da rede foi uma das razões que levaram ao fechamento da loja em 2005.
- Quando entrou a internet e o pessoal passou a baixar CD e DVD em casa, as lojas começaram a vender menos e a diminuírem seu movimento. Quando decidi encerrar, 40% ou 50% das lojas de CD do mundo já haviam fechado - diz Ademir:
Ademir Kessler, ex-proprietário da Megaforce e hoje revendedor de equipamentos de sistemas de som high-end, 60 anos: "Eu trabalhava como subgerente no Unibanco. Acho que, em 1981, comecei a ir a São Paulo uma vez por mês para comprar vinil. Observei como eram as lojas de vinil e me deu vontade de montar um estabelecimento assim aqui. Fui amadurecendo a ideia e em 1984 pedi demissão e saí para abrir a loja na Independência. Vi que era um tipo de mercado que não existia em Porto Alegre".
Luis Augusto Aguiar, administrador e autor do livro Tá no Sangue! - A História do Rock Pesado Gaúcho, 46 anos: "A loja tinha dois andares e ficava localizada na Galeria Independência, no Centro, próximo à Santa Casa. A Megaforce era uma Disneylândia para quem curtia rock pesado na época. Tinha um ambiente escuro, a parede lotada de camisetas. Para quem não estava acostumado, acredito que dava até medo. O aparelho de som era de ponta para a época, o que ajudava a dar o clima".
Ivan Santos: "Era o sonho da gurizada porque era a única loja especializada em metal. Tudo que surgia de novidade a gente encontrava lá. Eu passava a semana inteira juntando dinheiro da merenda para ir à Megaforce no fim de semana".
Ademir: "Sempre gostei das bandas como Deep Purple, Kiss e Led Zeppelin. Quando comecei a ir a São Paulo, conheci bandas que não chegavam a Porto Alegre. Lá já existiam lojas desse gênero, que vendiam acessórios, camisetas, bottons, bonés, banners, e aqui não tinha nada. A única loja que tinha uma ou outra coisa era a Pop Som, mas só de bandas conhecidas, como Iron Maiden e Black Sabbath. Então, abri a loja e comecei a trazer discos de Metallica, Venom, Slayer, Anthrax, bandas que estavam surgindo, mas ninguém conhecia. Foi uma revolução".
Celso Ávila Esmeraldino: "Na primeira vez que fui, era uma manhã de sábado. Tinha ido para trocar fotos das bandas de que gostava, e, nossa, tiveram que me arrancar de lá. O que me chamou atenção foi a variedade: tinha camiseta, muitos LPs, nossa, devo ter visto todos umas 180 vezes. Todos os discos das bandas que tu amavas, que tu nem sonhavas que existissem, estavam ali".
José Henrique Godoy, gerente de contas, 46 anos: "Nos sentíamos como uma tribo. Lá eu estava entre meus iguais, e ninguém iria rir ou me xingar por estar com camiseta de banda e cabelo comprido".
Flávio Soares Coutinho: "Sábado era dia que o pessoal do Interior ou da Grande Porto Alegre ia na Megaforce para trocar revistas, fotos".
Wilmar Souza Filho, advogado, 45 anos: "Por exemplo, eu era fã de Slayer e tinha uma foto do Iron Maiden que peguei numa reportagem. Daí trocava com o cara que colecionava Iron. Comprávamos as revistas e depois as desmembrávamos, recortando as imagens de bandas".
Mara Bitello: "Muitas vezes eu deixei de comer para pagar por uma reportagem de uma revista importada, mesmo que não lesse uma linha em inglês ou francês, menos ainda japonês. Eu fiz várias pastas de Slayer. Tenho até hoje. Eu era tão louca que comprava várias fotos iguais para mais ninguém comprar, pode?"
André Meyer: "Nós tínhamos pouca grana para adquirir os vinis, mas o Ademir gravava fitas K7. Era uma forma de poder escutar coisas novas".
Ademir: "O vinil era caro e difícil de conseguir. Tu não podias chegar lá em São Paulo e trazer 50 LPs do Metallica. Só trazia dois ou três e gravava em K7. Passava o dia gravando fita".
Jacques Maciel: "A sessão de vídeos foi uma das maiores inovações na época. Passava no sábado lá para assistir. Não existia MTV. Ele fazia três sessões por sábado. Em cada sábado, uma fita diferente. Ele trazia fitas de fora, de coisas que não saíam no Brasil".
Alexandre Nascimento: "Tu pagavas ingresso, como se fosse cinema".
Ademir: "Abrimos em cima da loja para passar vídeos. Existia um negócio que tu adaptavas numa televisão e projetava numa tela. Ficava uma imagem mais ou menos. Vivia sempre lotado, dava cerca de 40 pessoas. A gente conseguia vídeos de apresentações do Iron Maiden, Pink Floyd, Deep Purple".
Alexandre: "Essas sessões de vídeos eram muito engraçadas. Era uma piazada, todo mundo excitado como se estivesse em um show. Era legal porque o pessoal batia os pés, batia cabeça sentado nas cadeirinhas e aplaudia no final das músicas. No final das sessões, todo mundo descia com os olhos brilhando, em estado de catarse".
Celso: "O que o Ademir tinha de variedade, tinha de mau atendimento. Ele era de lua".
José Henrique: "Sempre disse que ele era um vestibular para lidar com ser humano. Era imprevisível: podia te colocar para correr ou passar a tarde te mostrando discos".
Alexandre: "Mas nem por isso o pessoal deixava de ir. Ele tinha um monte de coisa que ninguém tinha. Tu já sabias que ia ser mal atendido, mas comprava igual".
Flávio: "Ademir às vezes era meio estúpido. Isso me levou a abrir uma loja também em Porto Alegre, a Madhouse, em 1989. Foram duas lojas que fomentaram informação para a galera".
Ademir: "Eu não sou muito aberto, sou meio fechado. Mas a questão era que abríamos às 10h e fechávamos às 19h, e durante esse tempo tinha que aguentar muito metaleiro chato. Tinha cara que ficava três ou quatro horas lá, tu tinhas que ficar mostrando tudo, aí não comprava nada, virava as costas e nem agradecia, só ficava enchendo o saco".
José Henrique: "Tinha as frases clássicas do Ademir como 'Não te escora no balcão de vidro, pois se quebrar vai ter que pagar' ou 'Não dá para ouvir o CD se não vai comprar'".
Ademir: "Teve uma época que uns metaleiros iam lá para a galeria beber, fazer bagunça e barulho. Incomodavam os outros lojistas do centro comercial. E os seguranças começavam a intervir. Depois esse pessoal parou de ir, de tanto a gente pedir".
Sfinge Lima: "Ademir era um queridão, um cara que conhecia muito heavy metal. Ele não era carrancudo, era apenas sério. Seu mau humor fazia parte do show”.
Wilmar: "Sem a Megaforce, a cena teve uma queda grande. Lojas como a Megaforce faziam com que a cena persistisse. Hoje o pessoal gosta, mas fica em casa. Era uma coisa agregadora".
Ivan: "Era a rede social, só que ao vivo e a cores".
IGREJA DA GLÓRIA
O sagrado e o profano
Para Álvaro Bussons Borges, não foi possível conter a emoção ao entrar novamente no porão da Paróquia Nossa Senhora da Glória, após 25 anos.
- É como voltar no tempo. Me sinto guri de novo. É muito emocionante! Este lugar me traz muitas recordações. Era a minha segunda casa - relata o vocalista de 48 anos, que integrava a Sacrario no final dos anos 1980 e começo dos 1990. Hoje ele canta na Só Creedence, banda cover de Creedence Clearwater Revival.
Ao lado de três integrantes da Gladiator, Álvaro visitou a igreja para a sessão de fotos desta reportagem. Ao ingressarem no porão onde ensaiavam nos anos 1980, depararam com um salão abandonado, com livros velhos espalhados, consumidos pela poeira. Em nada lembrava o local que um dia serviu de estúdio para bandas como Sacrario, Gladiator e Alchemist. O espaço foi cedido pelo padre João Germano Rambo, que atuou na paróquia durante 45 anos, morrendo em 5 de maio de 2000. Houve ensaios das bandas de rock pesado na igreja de meados de 1986 até 1994. Depois, o local foi aproveitado para atividades da comunidade, como uma pastoral de crianças.
Ricardo Marques Carvalho, petroquímico e ex-baixista da Sacrário e da Gladiator, 48 anos: "Quando eu estava na Sacrario, nós ensaiamos um tempo em um sítio, mas tivemos problemas com os vizinhos. Metal é muito barulho, mesmo (risos). Depois disso, fizemos alguns ensaios em estúdio, até que o baterista da Impacto, Ricardo Lang, ficou sabendo que estávamos sem lugar. O grupo dele era uma dessas bandas de boate nas quais se tocava de tudo. O Ricardo era muito amigo do padre Germano Rambo e já ensaiava com a banda no porão da Igreja da Glória. Acabou conseguindo umas salas para a gente. Ele fez o meio de campo para nós e, em março de 1986, começamos os ensaios".
Robson Rachinhas, representante comercial e vocalista da Gladiator, 47 anos: "A Gladiator começou tocando na garagem da minha casa, mas começamos a ter desavenças com os vizinhos. Conversando com os caras da Sacrario, eles nos ofereceram um espaço para tocar na Igreja da Glória. Na época não era comum como hoje um estúdio em cada esquina".
Álvaro Bussons Borges, funcionário público e músico (ex-vocalista da Sacrario), 48 anos: "Lembro até hoje da primeira vez em que fui na igreja. Fui conferir um ensaio da Sacrario, banda da qual viraria vocalista. Chovia muito, ventava. Eu tinha 18 anos na época e fiquei apavorado (risos). O clima era Black Sabbath total! Era um porão que devia ter sido uma adega. Eu quase não acreditei: uma banda de metal que toca embaixo da igreja".
Ivan Santos: "Era literalmente o porão. Um negócio de concreto, com as paredes cinzentas. Tu entravas e tinha uma sala grande à direita, que da metade para o fim era o estúdio da Sacrario e depois da Alchemist. À esquerda tinha uma sala fechada, que era a parte da Gladiator. Na nossa sala, enchemos as paredes de caixa de ovo. Não havia tomadas, então, fizemos uma instalação em que todas as tomadas dos amplificadores saíam de uma lâmpada (risos)".
Ricardo: "Essas construções antigas de igrejas tinham paredes bem espessas. Imagino 1,5m de espessura, mais ou menos. Havia uma porta de acesso toda em ferro também grosso. Não tenho ideia para que era usada antes, mas parecia um calabouço".
Álvaro: "Nós precisávamos colocar caixas de ovos nas paredes por causa da reverberação. Para isso, achávamos que fazer o chamado 'grude' (farinha de trigo e água) era uma opção barata e boa. Porém, não tínhamos ideia que iria atrair tantos ratos. A gente chamava eles de 'ratos surdos', pois só assim pra aguentar a barulheira (risos)".
Robson: "Começamos a fazer barulho, daí começa a vir o amigo do amigo, e quando vimos tinha 30 pessoas num ensaio, como se fosse um pocket show. Virou um ponto de encontro. Uma banda de metal dentro de uma igreja parece uma coisa antagônica".
Ivan: "Como éramos guris, levávamos as namoradinhas para lá para nos exibirmos e, quem sabe, algo mais. Na época tudo era mais difícil, não tínhamos dinheiro para motel e morávamos com os pais. O estúdio era um lugar bacana que impressionava e ficávamos a sós".
Robson: "O único compromisso com o padre era não tocar em dia de missa. É claro que de vez em quando a gente não sabia quando tinha missa".
Ivan: "Volta e meia a gente estava ensaiando e vinha um coroinha ou sacristão da vida pedir para a gente parar porque estava acontecendo a missa".
Robson: "Havia um bar que ficava perto da igreja, o Bordaleza, que a gente frequentava. Era seguido isso: chegamos para tocar, pintou uma missa. Íamos para o bar, bebíamos, nos aquecíamos e voltávamos. Nossa intenção era não incomodar o padre para continuar mantendo o espaço".
Ricardo: "O padre era muito discreto, nem sabemos se algum dia realmente chegamos a incomodá-lo. Acho que ele via aquilo como uma maneira de nos trazer para perto da igreja. Talvez uma forma de mostrar para a comunidade que ele tinha uma cabeça voltada a todos".
Robson: "Ninguém estava fazendo nada além de arte ali, não era blasfêmia, apesar de barulhenta. O padre gentilmente cedeu a sala. Não era cobrado nada, apenas uma ajuda a título de luz, mas não era nada imposto, tipo 'tanto por mês'. A gente reunia um valor entre nós, às vezes ficava dois ou três meses sem pagar, de vez em quando reunia o dinheiro”.
Álvaro: "Não tínhamos muito contato com o padre. A não ser quando ele queria algum dinheiro. Várias vezes cortou a nossa luz. Era um sinal de que queria falar com a gente, um jeito de chamar a atenção. Tirávamos a sorte pra ver quem ia falar com o padre. Nós nos borrávamos de medo para falar com ele (risos). A igreja era tudo o que a gente tinha. Havia uma época que ensaiávamos todos os dias lá".
Robson: "O padre não escutava bem, por isso talvez aquela barulheira toda não fosse tanta para ele. Não era surdo total, mas escutava menos".
Sfinge Lima: "Eu ensaiei lá na década de 1990. O padre era muito legal, ele gostava de Slayer. Um dia, ele começou a falar de música e começou a falar de todos os discos. Ele não falou abertamente para mim 'Eu gosto de Slayer', mas nem precisou".
Robson: "Ele nunca bateu lá para dizer 'olha, não dá, esse tipo de música aqui dentro não'. Era tranquilo quanto a isso, sem problema nenhum. Saímos de lá por vontade nossa. Nunca convidamos o padre para um show nosso. Vai que ele não gostasse e pensasse que “não, isso não é de Deus”. Nem para ensaio a gente o convidava. Tínhamos uma relação amistosa: ele lá, nós aqui. Nem tentávamos nos aproximar do padre para ele não nos entender errado. O metal tem essa pecha de ser uma coisa demoníaca, embora seja arte".