Mano Chao encontra Carlos Gardel em um bar da Cidade Baixa e ambos decidem montar uma banda de cumbia psicodélica. Essa é uma imagem impossível de várias maneiras, mas que explica bem uma cena que acaba de brotar no Rio Grande do Sul. Uma cena de música incandescente e original, que consegue reunir a pulsação das arquibancadas de futebol com uma veia política latente.
Mas não apenas os lamentos de Gardel entram no caldeirão de referências latino-americanas que vêm sendo cozinhadas por bandas como Bombo Larai, Farabute, La Digna Rabia e Cuscobayo – e que influenciaram também o duo de música eletrônica CCOMA e os guitarristas gaúchos radicados em São Paulo Guri Assis Brasil e Gabriel Guedes. No ano passado, com exceção da Farabute, que ainda prepara seu álbum de estreia, todos eles lançaram discos que misturam ritmos latinos (cumbia, candombe, rumba, chicha, samba, murga e o que mais o verbete abarcar) costurados por rock.
Leia mais
Festas latinas invadem casas noturnas da Capital
CCOMA mistura ritmos latinos e música eletrônica
Guri Assis Brasil lança disco influenciado por cumbia
Não é uma incursão nova, claro. O flerte entre Brasil e outros países da América Latina existe há muito tempo – da música sertaneja bebendo no bolero e na guarânia aos Paralamas do Sucesso namorando seriamente o rock argentino, passando por parte do cancioneiro nativista.
– Essa conexão sempre existiu, mas depois do advento do rock, ali pelos anos 1960 e 1970, ficou restrita a nichos – avalia o produtor Fernando Rosa, dono do selo Senhor F e idealizador do festival El Mapa de Todos, focado justamente no intercâmbio musical latino-americano. – Minha percepção é a de que, com a internet e a consequente queda do sistema analógico de distribuição de discos, abriram-se novas possibilidades de restabelecer esses contatos.
E esses contatos começaram a se restabelecer de maneira orgânica, espontânea e por diversas vias. Entre 2010 e 2015, período em que Bombo, Digna, Fara e Cusco surgiram, o Uruguai do presidente José Mujica virou tendência internacional. Antes disso, o Fórum Social Mundial havia botado o Brasil (e principalmente Porto Alegre) em contato direto e massivo com seus hermanos.
– Era tanta gente de tantos lugares diferentes, com tantas bandeiras levantadas, que dava a sensação real de pertencimento à América Latina. Acho que ali despertou esse interesse pela cultura latina – comenta Vandré La Cruz, da Bombo Larai.
A partir de então, Porto Alegre, que sempre recebeu bem artistas de Argentina e Uruguai, passou a atrair também gente de outras paragens, como Bolívia, Colômbia e Peru. Músicos alternativos que celebram a latinidade, como Mano Chao, Onda Vaga e Los Fabulosos Cadillacs, tornaram-se populares e influenciaram definitivamente o cenário local.
Um dos entusiastas da cena, Max Rivera comanda, há quatro anos, o programa de música latina Antena Pachamama, da rádio web Dinâmico FM. Ele cita também o Festival El Mapa de Todos como um dos responsáveis pela popularização da música latina na Capital:
– Acho que ver o Opinião lotado meio que pode ter dado coragem para essa galera a botar o bloco na rua.
Hoje, a Capital ferve com uma cena de festas latinas muito bem estabelecida – e começa, aos poucos, a abrir espaço para bandas autorais, nas quais guitarras e cajons, contrabaixos e trompetes, bombos e guaches convivem em perfeita sintonia. No encontro de Mano Chao com Gardel, talvez caberia um Belchior também. Já que, para essa turma, um tango vai bem melhor do que um blues.
Sotaque Castelhano
Bombo Larai, Farabute, Cuscobayo e La Digna Rabia nasceram quase ao mesmo tempo – entre 2010 e 2012. Em comum também estão a paixão por futebol, política e festa. Com exceção da Farabute, que queria ser uma banda de tango, os grupos dividem ainda um background roqueiro: ou seja, chegar aonde chegaram não tem uma explicação fácil. E talvez nem precise.
O que é preciso saber de todas elas é que formam (ou estão formando) uma cena plural, voltada para a coletividade e que rechaça qualquer tipo de comportamento exclusivo. No churrasco que fizeram para receber a reportagem, dividem cigarros, trago, histórias, inspiração e até integrantes – caso de Gabriel Luzzi, trompetista ao mesmo tempo na Farabute e na La Digna Rabia.
A preocupação com figurino é zero: todos se vestem da maneira mais confortável e informal possível. Quando pegam nos instrumentos, a música flui de imediato, seja uma composição própria de algum deles, seja um cover da... Shakira. O que importa, mesmo, é a sintonia. E assim seguem.
BOMBO LARAI
A banda começou a ser bolada no final de 2011, com o reencontro dos amigos Vandré La Cruz e Guilherme Cardoso em Porto Alegre. Quando adolescentes, os dois haviam integrado bandas de punk, mas estavam decididos a ir adiante. Vandré mostrou algumas composições que tensionavam a mistura de ritmos, mas tudo ainda bem rock, bem quadradinho.
– No começo, a gente misturava sem misturar – comenta Guilherme. – Tínhamos a parte da cumbia, a parte do rock, a parte da murga, tudo separado.
Com o tempo, a banda foi se nutrindo de mais e mais influências latinas, com as incorporações de Gustavo Cordera e Chico Trujillo, e aprendendo a costurar os ritmos sem que soasse forçado. Quando viram, estavam botando peso na cumbia e tambores no rock, o que acabou criando a textura característica da Bombo – que ganhou o nome por conta do bombo murguero, instrumento presente em bandas de torcidas de times de futebol.
O projeto foi crescendo e, em 2015, eles abriram o show da Orquesta Buena Vista Social Club, em Porto Alegre. Hoje, a Bombo é composta por Guilherme, Ralf Pires, Diogo Solka, Taylan Vargas e Eduardo Figueiredo. Vandré, por força maior, precisou abandonar o grupo que, no ano passado, lançou seu primeiro disco, calcado especialmente na cumbia e trazendo pequenas crônicas do cotidiano – como Última Noite com Régis e Cachaça Loka, mas também com espaço para declarações de amor (Solução e Irresponsável).
– A gente tem pitadas de samba, baião, maracatu. Queremos botar tudo no caldeirão, e penso que a cumbia ajuda muito, talvez pela rítmica fácil. Ela vai bem com tambor, com triângulo, com zabumba, com guitarra, metais... – define Guilherme.
FARABUTE
O início da Farabute é insólito: eles queriam ser uma banda de tango. Mas não demorou para começarem a pender para os lados de Manu Chao, Fito Paez, Andrés Calamaro e outros. Um ano depois dos primeiros ensaios e apresentações de covers, em 2013, o grupo já tocava pela noite de Porto Alegre com repertório próprio. No verão de 2015, entraram em uma Kombi 1983 e saíram viajando pela América do Sul, tocando em bares e ruas da Argentina e da Bolívia e absorvendo a musicalidade de cada um desses lugares.
– Nosso som tem uma pegada que chamamos de mestiça por misturar várias influências – explica Gabriel Luzzi. – Tem elementos do samba, do candombe, da chicha, da cumbia, que afanamos desses gêneros para mesclar e fazer a nossa música.
Para além de botar todo mundo para dançar, Gabriel salienta que a Farabute não ignora a responsabilidade social que carrega. Em suas letras, a banda trata de questões relacionadas à transgenia, agronegócio e luta indígena.
– Nosso sons e nossas atitudes estão muito ligadas umas com as outras. Para nós, fazer música é um ato político. Há de se ter responsabilidade no que se faz e no que se fala – comenta. – Então, somos avessos a manifestações de violência, como machismo, racismo, trans e homofobia e toda e qualquer forma de opressão. Estamos atentos a isso como grupo musical e individualmente e acreditamos que nossa música tem o potencial para tocar e mudar muita coisa.
CUSCOBAYO
Rafael Froner tinha um projeto de milonga. Um belo dia, decidiu chamar alguns camaradas da banda de rock Drones Primatas (que ainda existe) para um show conjunto. O público gostou. No segundo show com a mesma formação, havia o dobro de gente. No terceiro, o dobro do dobro. Em 2012, a Cuscobayo já era uma banda de fato.
A influência latina veio muito pelo futebol, uma vez que Froner tocava na banda da torcida Popular, do Inter. No repertório, versões de bandas argentinas de rock, como Los Fabulosos Cadillacs e outras.
– Aquilo era fascinante, mas a gente tocava sem saber exatamente o que era. Daí comecei a pesquisar e ver que era cumbia, que era candombe – ressalta o músico. – Mas nossa inspiração não tem nada a ver com o jogo, com o ídolo, e sim com as arquibancadas, com a emoção que vem dali.
Atualmente, a Cusco comporta, além de Froner, Alejandro Montes de Oca (trompete), Lourenço Alberti Golin (baixo), Marcos Sandoval (cajón) e Rafael Castilhos (percussão). Com um EP lançado em 2013 e um disco, em 2016, a banda já é consolidada na região de Caxias do Sul, com 230 shows feitos em mais de 40 cidades de Rio Grande do Sul, Goiás, São Paulo, Santa Catarina e Argentina.
Sua sonoridade incorpora, além dos ritmos mais quentes, um pouco de folk. Suas letras tratam majoritariamente de questões existenciais (Plantador, O Tempo que te Resta) e problemas sociais (Comandos em Ação, Dakar).
LA DIGNA RABIA
No início dos anos 2010, Marcelo Câmara decidiu montar um grupo de rock de protesto. Oriundo do movimento anarquista e influenciado por The Clash e por bandas que trabalhavam com ska, juntou dois amigos e formou um power trio. Só que não durou muito.
– A gente curtia bandas com instrumentais mais complexos e começamos a pensar que seria legal incorporar mais elementos – conta Marcelo. – Daí entrou mais um guitarrista, colocamos um acordeom e por aí foi até que, em 2014, fechamos a formação que temos hoje, com nove integrantes.
Banda com veia política saltada, o Conjunto Musical La Digna Rabia pode ser visto tocando em locais públicos, eventos promovidos por movimentos sociais e ocupações – como a que ocorreu na Câmara Municipal de Porto Alegre em 2013. Lançado em 2016, seu disco de estreia, Conjunto Musical La Digna Rabia y el Increíble Baile Calavera, espelha essa postura combativa.
Suas músicas, compostas e cantadas majoritariamente em espanhol, elogiam a rebelião (Vivir Así, Ganas de Vivir), denunciam o autoritarismo (Ser Gobernado, Nunca Son Ellos) e os desmandos do capitalismo (Donde Está), mas também exaltam o amor (na impagável Garota Black Block).
No palco, a frequência é sempre alta.
– Temos um show muito vibrante, que é mais para o punk rock do que para qualquer outra coisa – salienta Marcelo. – Mesmo quem nunca ouviu a gente pira. Porque a resposta que o público precisa dar é muito simples: se louquear (risos).