Uma semana depois de Manaus se tornar foco de debates e noticiários devido a um massacre que deixou 56 mortos em uma penitenciária, a cidade voltará às telas e às conversas, mas desta vez por conta de uma ficção. A série Dois irmãos, baseada no premiado romance do amazonense Milton Hatoum, estreia na segunda-feira, logo após a novela A lei do amor, levando para a casa de milhões de brasileiros a história dos gêmeos Omar e Yaqub, descendentes de uma família de origem libanesa que vivem uma rivalidade capaz de esfacelar suas vidas.
Milton Hatoum, 64 anos, tem vibrado com o resultado do trabalho do diretor Luiz Fernando Carvalho e da roteirista Maria Camargo, que há oito anos trabalhavam para levar o romance lançado em 2001 para a televisão.
– Só assisti a um capítulo, ainda não finalizado, mas fiquei muito impactado.
É um trabalho de altíssimo nível – avalia o escritor, sem esconder a admiração.
Nesta entrevista, no entanto, Hatoum não demonstra apenas euforia. O autor afirma sentir tristeza em relação ao quadro de políticos eleitos nas últimas eleições, e não crê que as autoridades responsáveis possam alterar o contexto que permitiu uma barbárie como a ocorrida no Complexo Penitenciário Anísio Jobim. Autor de quatro romances e um volume de contos, Hatoum também expõe sua crença no potencial transformador da educação pública, da arte e da liberdade.
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Seu romance Dois irmãos deu origem a uma série que estreia nesta segunda, na RBS TV, com grande elenco e gravações em diferentes locações. Em algum momento o senhor imaginou que a história tomaria essa dimensão?
Quando escrevi, não pensei em adaptação. O modo como eu escrevo, e também a literatura que eu gosto, combinam ação com muita reflexão. Há muito pensamento, densidade psicológica dos personagens. Sempre achei que isso dificultaria uma adaptação. Aliás, prefiro chamar o trabalho da (roteirista) Maria Camargo e do (diretor) Luiz Fernando Carvalho de recriação ou transcriação, mais do que uma mera adaptação.
O senhor viu o resultado?
Só assisti a um capítulo, ainda não finalizado, mas fiquei muito impactado. É um trabalho de altíssimo nível. A ideia da série vem de muito tempo. A Maria Camargo leu o livro, em 2001 ou 2003, e conversou comigo para fazer uma adaptação para o cinema, mas o projeto acabou não se realizando. Mais tarde, o Luiz Fernando Carvalho teve o interesse em transformar o livro em série, então se reuniram. A Maria disse que leu o livro 25 vezes. Coitada, é uma masoquista (risos). Ela encheu as paredes do escritório dela de marcações. Foi à loucura. O roteiro é muito bom. Foi escrito ao longo de oito anos. Quando o roteiro falha, é difícil, até para um grande diretor. Topei tudo isso também porque conhecia o trabalho do Luiz Fernando. Lembro que uma vez eu, ele e Raduan Nassar passamos oito horas conversando sobre o filme Lavoura arcaica (2001).
Como foi a experiência de finalmente ver seu trabalho na tela?
Foi muito recente. Fui ao Projac por outros motivos, mas o Luiz Fernando me encontrou e disse: "Você quer ver um copião do primeiro capítulo?". Aí ele me jogou em uma salinha escura, e eu fiquei ali, com meus fantasmas. É muito louco você ver aqueles personagens que inventou na tela, falando e se expressando, ver o Rio Negro... Você lembra dos seus avós... Não é um romance autobiográfico, mas a gente sempre lembra das pessoas que se envolveram, da minha mãe que queria tanto assistir, mas morreu, dos meus parentes que já se foram. Fiquei muito emocionado.
É também a experiência de rever personagens com os quais o senhor se envolveu muito ao longo da escrita, mas que provavelmente foram se afastando aos poucos do pensamento depois do lançamento.
Exatamente. Nunca li esse livro. Agora vou rever tudo isso, mas vou ver outra coisa também, pois o roteiro deixa a essência do livro, todo o nó dramático, mas o quadro histórico sobre a ditadura foi aprofundado, por exemplo.
O senhor nunca lê os seus livros?
Nunca. Para ser honesto, só tive que ler, quase por obrigação, o Órfãos do Eldorado, porque ajudei muito na tradução deste para o inglês. Como é um livro curto, e o tradutor me fez muitas perguntas, pensei "pô, tenho que ler essa coisa", mas um pouco a contragosto. Não li os outros. Você lê tantas vezes o manuscrito, fica saturado. Dois irmãos teve muitos anos de escrita. Foram várias versões.
Como foi a sua participação na série?
A única coisa que fiz foi ler o roteiro e fazer pouquíssimas observações. Achei tão bonito. Eram quase 500 páginas, consegui visualizar muitas coisas. Só chamei a atenção da Maria Camargo em relação à fala dos amazonenses, sobre o tuteio com concordância, diferente do tuteio dos gaúchos e dos cariocas. Com o Luiz Fernando conversei muito, ele me fez muitas perguntas, queria saber como eu imaginava paisagens e personagens, mas não interferi em nada.
Dois irmãos é um livro complexo de adaptar pelo caráter denso e reflexivo de seus personagens. Por outro lado, possui tramas paralelas, o que é positivo para o audiovisual. A história de Nael, por exemplo, narrador do livro, é tão importante quanto a dos gêmeos.
Pois é. Minha curiosidade era saber como eles iam lidar com a questão do narrador. Encontraram uma ótima saída: o Nael adulto é interpretado por Irandhir Santos, que faz a narração em off também. O narrador então é mantido, com a voz do Irandhir, que é forte, muito poderosa.
Uma das escolhas curiosas da direção foi usar o mesmo ator, Cauã Reymond, para o papel dos dois gêmeos do livro.
O Cauã tem uma história interessante com o livro. Ele ganhou o Dois irmãos da mãe quando estava atuando em Malhação. Quando leu, disse que queria fazer o papel dos gêmeos. E acabou caindo no colo dele, como ele mesmo fala. Em um encontro que participamos, Cauã disse que esse foi o papel da vida dele. Ele inclusive se cortou, levou pontos em uma cena destruidora em que o personagem enlouquece. Acho que o ator também enlouqueceu naquele instante, entrou em um processo catártico. Vi o resultado no primeiro capítulo e em alguns trechos selecionados pelo Luiz Fernando. Cauã está incrível mesmo.
O senhor acredita que o diretor Luiz Fernando Carvalho foi fiel ao seu livro?
Ele foi muito fiel ao livro, mas também à própria linguagem dele como diretor. Luiz Fernando desenvolveu e aprofundou um estilo muito pessoal, com influência de Visconti, Fellini, Tarkovski, Glauber Rocha... Você pode perceber as influências, como se percebe em um escritor. Ele tem uma elaboração estética incrível, e o trabalho de direção com os atores é também exemplar. A moça que interpreta a personagem Domingas, que é descendente de índios no romance, é também indígena. Ele não quis chamar uma branca conhecida para o papel de uma índia. Foi bacana. O que vai acontecer é um pouco daquilo que o João Cabral de Melo Neto dizia do Morte e vida severina, que não conseguia mais ler o próprio poema sem associá-lo à música do Chico Buarque. Meu romance agora não está mais sozinho, tem os pares dele.
O Brasil vive um momento de instabilidade política e econômica. Dá algum tipo de esperança ver que um projeto como Dois irmãos, que exibe uma brasilidade pouco conhecida do grande público, está prestes a estrear? Um novo Brasil pode ser pensado pela nossa cultura?
É interessante você dizer isso, porque o Luiz Fernando me falou exatamente o mesmo em uma conversa. Ele e também alguns atores. É um momento de pensar o país. Isso vai mexer também com a família brasileira, com os imigrantes, pois este é um país de imigrantes, sejam estrangeiros ou migrantes daqui mesmo, de diferentes regiões. Além disso, como o arco temporal é longo, ele começa lá atrás, mas chega na violência de hoje em Manaus. O Luiz Fernando inclusive avançou nesse sentido, colocou coisas no roteiro que não estão no livro, mas que cabem muito bem no momento que estamos vivendo, com a minha cidade destruída. A violência da ditadura está voltando nessa caricatura de democracia em que vivemos. A série vem em um momento em que o país está muito dilacerado. O Brasil está encalacrado.
Uma série como essa pode ser considerada um modo de resistir a esse dilaceramento?
Sim. Com meu pessimismo arraigado, acho que o único caminho é a liberdade e a arte. Em Dois irmãos, quem resiste na família retratada na história é o narrador, o Nael. O verdadeiro sobrevivente é ele, porque os outros já se foram ou estão desgarrados, enlouquecidos ou embrutecidos. Mas, como Nael estudou, resiste. Quis demonstrar como a educação e o ensino público são importantes. Nael estudou em uma escola pública, terminou como professor de francês. É quase um aceno nostálgico à cultura francesa. Nael escrever, ser o porta-voz dessa memória, representa a única esperança que a arte e a literatura oferecem. A única saída é a liberdade. Em uma cena do livro, a mãe de Nael diz que quer se libertar, e ele diz que aquelas são palavras vazias. Pois é isso mesmo, a servidão não acaba com palavras, acaba com a resistência à servidão.
Apesar da exuberância da paisagem e da cultura amazonense, projetos como Dois irmãos, que se debruçam com densidade sobre a cultura regional, não são frequentes. Por outro lado, Manaus tornou-se tema de debate público na semana que passou por conta do massacre no Complexo Penitenciário Anísio Jobim. Se o Brasil desse maior atenção ao seu tamanho e diversidade, tragédias como essa poderiam ser evitadas?
Essa é uma questão importante. O Luiz Fernando também costuma falar "Olha, vamos levar a Amazônia para o debate, para a tela, para a estética, para a reflexão". Uma região que é muito falada, celebrada, mas pouco conhecida, será mostrada. Fizeram uma série ambientada em Manaus, com questões familiares e questões da cidade, e ela é lançada em um momento em que Manaus é foco pelo pior dos motivos. Jornais do mundo todo falaram desse massacre. É mais uma coincidência. No Cinzas do Norte, de 2005, tenho um personagem que é preso nessas condições. A gente sabe desde sempre que a situação é essa.
Ou seja, a notícia é surpreendente porque o debate público não prestava atenção nesse tema, no entanto, os sinais estavam aí.
Os sinais estão aí, e não vão melhorar, infelizmente. Estava lendo as declarações do ministro e do secretário de direitos humanos. São declarações conflitantes. Além disso, há as declarações estarrecedoras de muitos internautas sobre o tema, dizendo coisas como "É isso mesmo, tem que exterminar essa gente". É uma coisa de louco. O Brasil é um país muito conservador. O Graciliano sacou isso nos anos 1930. No Memórias do cárcere ele fala do "nosso pequenino fascismo tupiniquim", com ironia.
É uma massa conservadora que sempre existiu, mas que está mais visível por conta da internet.
É, e se a gente olhar também para os governantes, pessoas que ganharam as eleições, dá uma tristeza. A questão da Amazônia é importante, é preciso pensar o país como um todo. É claro que esse governo não tem condições de fazer isso. O anterior ainda teve alguma possibilidade, mas também decepcionou. Fiquei completamente decepcionado com a questão ambiental, com a questão indígena. Ainda estão vendo a Amazônia como um lugar para transformar em pasto. Isso me parece uma coisa absurdamente burra, de uma ganância sem fim. E nós estamos todos implicados. Quem fez a Revolução Acreana, por exemplo, foi um gaúcho, o Plácido de Castro. É nesse Brasil que temos que pensar, de Norte a Sul, o que a Amazônia representa hoje para o país. Essa exuberância serve para quem?
O diálogo cultural entre as diferente regiões ainda é pequeno?
Sim. Uma das coisas que gostei em relação aos meus livros é que muitos brasileiros jovens de outras regiões foram para Belém e para Manaus por conta das histórias que contei. Até brinquei com um gaúcho que fez isso. Disse a ele que fiz o mesmo caminho, porque li o Erico Verissimo em Manaus (risos). É claro que não quero me comparar a esse gigante, mas, na minha modéstia, fiz esse caminho. Conheci a história do Rio Grande do Sul no ginásio, na época que os professores da escola pública trabalhavam com Jorge Amado, Erico Verissimo, Graciliano Ramos... Aí foi que me dei conta de que o Rio Grande do Sul é tão diferente do Amazonas, mas fala a mesma língua.
Mas há também muito em comum entre os dois Estados.
Claro, se pensarmos na presença da cultura indígena, por exemplo. São coisas muito distantes, mas muito próximas ao mesmo tempo.
E também na distância em relação ao eixo Rio-São Paulo.
Sim. Nesse sentido, o Luiz Fernando e a Maria Camargo apostaram nisso, em sair do eixo, em perceber que o Brasil é maior do que isso.
O senhor é também um espectador de televisão? Algo tem lhe empolgado em relação ao audiovisual?
Não sou um grande espectador. Gostei muito da série Justiça. Acredito que as séries, futuramente, tomarão o espaço das novelas. Não dá mais para alguém ficar enrolando tantos meses, um telespectador ficar assistindo a um capítulo inteiro em que um personagem passa só tomando vinho e falando abobrinha. A tendência é o filme na TV. No fundo, é isso que o Luiz Fernando faz, um filme de longuíssima metragem, de oito horas, dividido em episódios. Isso resulta em mais densidade, dramaturgia, roteiro mais fechado. Ali há o essencial, é mais verdadeiro, e funciona esteticamente. Os seriados americanos e ingleses são muito bons. Há lá grandes roteiristas. Além disso, não se pode subestimar a capacidade do público, mesmo que ele seja desinformado ou tenha escolaridade fraca. As pessoas mais humildes, mais pobres, se não têm leitura e repertório, têm experiência de vida. É aquilo que o geógrafo Milton Santos chamava de "experiência da escassez". Não se pode subestimar isso. Ao contrário, elas podem muito bem assistir a trabalhos mais complexos.