Em uma conferência lida por mais de uma hora no Salão de Atos da UFRGS, o convidado desta segunda-feira do Fronteiras do Pensamento, Michel Houellebecq, tinha duas coisas a dizer: a primeira é que o pensamento francês não está em crise, e sim o pensamento de esquerda francês, responsável pela decadência intelectual do país nos últimos setenta anos. A segunda, que isso não significa necessariamente uma ascensão da direita, mas uma nova e inusitada liberdade para que um intelectual pense sem amarras ideológicas.
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Esta é a segunda visita de Houellebecq a Porto Alegre como palestrante do Fronteiras. Há 10 anos, na primeira edição do evento, ele fez a conferência de encerramento, e seu retorno foi viabilizado com parte da programação de aniversário do ciclo. Na longa palestra, escrita com o vigor que também aplica em sua prosa, incluindo doses de humor, sarcasmo e provocação, Houllebecq apresentou o que considera a "situação dos intelectuais franceses no começo do século 21". Ele começou pedindo desculpas pelo fato de citar longamente alguns intelectuais muito discutidos na França mas pouco conhecidos e editados no Brasil. Os dois principais foram seus amigos e interlocutores Philippe Muray (1945 - 2006) e Maurice Dantec (1959 - 2016) - a fala foi dedicada a este último, falecido este ano. De fato, Dantec teve apenas um livro editado no Brasil, o misto de ficção científica, policial e romance de ideias Raízes do mal (Sulina, 2009). Muray, nenhum.
Houellebecq abriu a conferência citando um artigo do jornal inglês The Guardian que criticava o atual estado de coisas no pensamento francês, mas que, nas palavras do autor, só criticava no fundo o fato de os intelectuais franceses hoje serem de direita e pessimistas. A partir daí, Houellebecq passou a discutir se os pensadores franceses de fato ensaiaram uma guinada à direita.
De acordo com Houellebecq, a associação com o nazismo sepultou, após a II Guerra, a intelectualidade à direita, mesmo as correntes que haviam resistido à ocupação alemã, cimentando a hegemonia de que a esquerda, principalmente a comunista, usufruiria por décadas. Essa hegemonia começou a cair depois de 1968, com a divulgação das atrocidades comunistas e a publicação de livros como como Arquipélago Gulag, o depoimento-denúncia de Aleksandr Soljenítsin sobre as prisões estalinistas. O resultado dessa perda de hegemonia na França foi, na visão de Houellebecq, a erupção de uma revolta em curso da elite intelectual contra o povo, visto como ignorante e incapaz de fazer as "escolhas certas".
– Em 1995, a votação do Tratado de Lisboa foi recebida com um sonoro não na França, e mesmo assim ele foi aceito no parlamento. Tal desrespeito à democracia nunca havia ocorrido no país. Cogitou-se refazer o referendo porque o povo havia votado mal, até mesmo convocando nova votação, como ocorreu na Irlanda em 2005, mas no fim o governo aceitou o tratado e o mandou para votação no Parlamento ignorando o referendo.
Houellebecq também atacou com veemência os dois nomes que representaram o intelectual francês nos anos do pós-Guerra: Jean-Paul Sartre e Albert Camus. Fez questão de dizer que até ali havia feito uma apresentação embasada em fatos verificáveis, e que agora emitiria opiniões. A mais provocativa delas é que, da obra dos dois gigantes intelectuais do século 20, não sobra nada se examinada com rigor.
– Um filósofo é alguém que produz um discurso abrangente sobre o mundo em todos os seus aspectos, inclusive os tecnológicos. E o que me choca em Sartre e Camus é a ignorância científica dos dois. O século 20 foi extremamente científico, ele vê o nascimento da física quântico, a divisão do átomo e não se vê nada disso na filosofia de ambos, é como se não existisse. - disse Houellebecq, para quem, no futuro, só sobrariam da obra de ambos as duas primeiras linhas de O estrangeiro, de Camus, e nada de Sartre.
Os sucessores dos dois, intelectuais como Derrida, Foucault, Deleuze e Lacan, entre outros, não receberam tratamento melhor. Para ele, com suas páginas repletas de palavras com ilusão de profundidade mas nenhum sentido, são "charlatões e mistificadores".
Houellebecq comparou então o status de "profeta" que lhe é atribuído por seu trabalho com o de seus pares Dantec e Muray, que para ele tinham uma obra mais sólida.
- O que eu profetizei, mais geralmente falando: um, o surgimento do transumanismo. Isso já começou, lentamente, e é possível que esse movimento se acelere. Dois: a tomada do ocidente pelo Islã moderado a que o ocidente prefere se submeter abdicando de valores que já não o servem mais. Mas quem vem se manifestando com mais força na França não é o Islã moderado, o que mostra que eu sou um profeta de médio prazo, cujas previsões se realizam lentamente.
Ao falar sobre a violência do Estado Islâmico contemporâneo, algo a que acabou associado após o ataque ao jornal Charlie Hebdo justo na semana em que lançava Submissão, Houellebecq mencionou a História dos Girondinos, de Lamartine (1790–1869), que havia lido há pouco, para comentar o quanto havia ficado impressionado com a fé e com a violência e sede de sangue dos revolucionários franceses do século 18. Para ele, essa é sua "dúvida pascalina": o fato de ninguém ter por certas as razões pelas quais o terror revolucionário parou pode ter a ver com um impulso humano por orgias de sangue que, satisfeito após uma explosão de violência, se esgota e exaure. Não é ainda uma conclusão otimista, já que, segundo Houellebecq, a verdadeira expansão do jihadismo sequer começou, e que o crescimento demográfico está do lado dos muçulmanos em um Ocidente em que o índice de natalidade está caindo.
- É interessante que as únicas pessoas que propuseram ideias interessantes sobre família são as que se interessam por pessoas, as que são escritores imaginando personagens. Estamos saindo de um período estranho e anormal de duas décadas em que as ideias mais interessantes emitidas na França não foram as de intelectuais profissionais, mas as de escritores.
Ele encerrou com o que considera sua nota pessoal de otimismo: a de que, graças à ousadia provocadora dos ficcionistas como Muray e Dantec e ele próprio, os intelectuais franceses estão livres
- As vacas sagradas morreram. A verdade é que nós, os escritores, libertamos os intelectuais franceses. Nenhum de nós foi o que poderia ser chamado de grande pensador, somos muito artistas para isso, mas libertamos o pensamento. Agora é com os intelectuais. A França é um velho país, setenta ou cem anos de declínio ou avacalhação intelectual não são nada.
Haveria um tempo na sequência para perguntas da plateia, mediadas pelo historiador Francisco Marshall, mas um Houellebecq taciturno e sem muito entusiasmo foi breve em suas respostas, às vezes comentários que não se dirigiam à questão diretamente formulada.