Talvez haja esperança a longo prazo para a humanidade, mas para o filósofo alemão Peter Sloterdijk, palestrante desta segunda-feira no Fronteiras do Pensamento, curto prazo as perspectivas não são nada boas. Para ele, que realizou sua conferência no Salão de Atos da UFRGS, a primeira metade deste nosso século 21 deve repetir os excessos violentos vistos em boa parte do século 20.
– Penso que a realidade hoje se assemelha a como estávamos em 1915 – comentou ele, comparando o atual panorama com uma época no século passado em que a I Guerra recém havia começado e não haviam se sucedido, ainda, a II Guerra, os horrores do nazismo, as perseguições do socialismo soviético, várias ditaduras latino-americanas e conflitos menores da Guerra Fria.
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Autor de Crítica da razão crítica, no qual retoma o título do clássico de Kant para discutir um tempo em que a própria fé no saber parece ter cedido ao peso do pós-modernismo contemporâneo, Sloterdijk não falou no Fronteiras sobre cinismo, e sim sobre as tensões históricas que a humanidade enfrentou ao longo de sua evolução entre as forças que a ligam à natureza e ao impulso de domesticação que está por trás da civilização – ainda que uma domesticação precária e a todo momento ameaçada pelo retorno da barbárie.
– A domesticação atual do humano foi insuficiente. A tarefa da civilização só foi realizada pela metade – declarou.
Sloterdjik leu uma longa conferência na qual encadeou seus argumentos, começando pelo que ele chamou de sua própria definição de história, para a qual usou uma metáfora biológica. Para ele, parafraseando a famosa frase do Manifesto Comunista, a História é o conflito entre sistemas imunológicos, entendidos aí como as estruturas, processos e instituições adotadas por comunidades humanas fechadas como salvaguarda para a possibilidade de dano provocado pelo exterior.
– Se podemos entender a vida como o sucesso de estruturas imunitárias que incorporam e combatem a expectativa de danos ou lesões, fica patente que também as culturas são elaboradas da mesma forma – disse.
Estendendo a comparação entre sociedade e a biologia, Sloterdijk lembrou que o ser humano pode ser encarado como uma espécie que, a seu modo, também é caracterizada pelo que se chamaria de Neotenia, a manutenção de características juvenis em organismos biológicos que têm desenvolvimento e maturidade sexual atrasadas.
– Se pensarmos como a prole humana vem ao mundo, sua fragilidade e sua vulnerabilidade são quase bizarras – comentou, complementando que são necessários anos de cuidados para que um filhote humano alcance uma certa autonomia, inclusive sexual.
Parte desse preparo se dá pela educação, que é uma das ferramentas de domesticação do ser humano que se contrapõem, na visão de Sloterdijk, à selvageria natural. A própria palavra domesticar já trai, na raiz "doméstica", a primeira comunidade que amaina os impulsos naturais humanos. A metáfora se expande para englobar as demais instituições que, ao longo da história, foram sendo agregadas ao projeto de civilização: as leis, os sistemas de solidariedade que unem comunidades, conceitos de nações. A existência de um projeto de civilização não invalida, lembrou o filósofo, a permanência de forças contrárias ao trabalho de domesticação da humanidade, como a visão de mundo militarista, empenhada em formar novas comunidades menores forçadas a colaborar sob estresse, e as religiões.
O modelo final do choque entre essas duas visões de comunidade, criadas para proteger seus integrantes do dano provocado pelo outro, seriam as "civilizações" no conceito de Samuel Huntington, e suas concepções diferentes de medidas de proteção seriam as responsáveis pela difícil convivência contemporânea.
– A curto prazo, o que temos é um grande população à espera de ser alistada em conflitos em que atitudes de autodestruição são a estratégia – disse o filósofo, que acredita, contudo, que a atual fragmentação não deve durar para sempre.
*ZERO HORA