Em um Araújo Vianna lotado, o escritor inglês Ian McEwan comprovou em sua palestra do Fronteiras do Pensamento que seu humor inteligente sobrevive ao trânsito da palavra falada. McEwan realizou uma conferência sobre sua busca pessoal pelo realismo em seus romances, e na sequência respondeu perguntas do escritor Daniel Galera, chamado ao palco para o debate com o britânico, e da plateia, lidas pelo mediador Túlio Milman. Ao todo, foram quase duas horas de uma conversa inteligente que em mais de um momento arrancou risos da audiência – e aplausos entusiasmados ao fim de cada declaração.
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McEwan começou falando sobre como os livros de um autor, após sua morte, são praticamente uma nova história que o escritor não teria escrito, mas que é tão reveladora quanto: a evolução do autor ao longo dos 60 centímetros –ou três metros, para alguns – que aquelas obras ocupam numa estante. McEwan passou a contar um pouco dessa história aplicada à própria carreira. Sua estreia foi com um volume de contos, Primeiro amor, últimos ritos, publicado quando ele estava no início da faixa dos 20 anos. Ele começou com o conto porque era uma forma mais aberta à experimentação de um iniciante.
– Contos dão a você a oportunidade de falhar, e de falhar ao longo de apenas algumas semanas. Por isso sempre recomendo que os autores comecem com contos, porque é uma forma que permite que você experimente.
Nos primeiros anos de sua carreira, McEwan tinha um peculiar gosto por narradores e pontos de vista inusitados, por vezes aparentados com o grotesco, mas a partir de um determinado momento em sua trajetória, o autor passou a tentar criar um mundo no qual houvesse maior exatidão, e com isso começou a pesquisar mais para dar solidez aos detalhes de suas tramas. A etapa da pesquisa é realizada ao mesmo tempo que a escrita, e com a mesma energia.
– A pesquisa se tornou minha paixão. É como se, com cada romance, eu estivesse começando uma nova jornada.
Para dar um exemplo, McEwan narrou um pouco dos bastidores da criação de seu romance Sábado, no qual o protagonista é um neurocirurgião de prestígio. Para capturar o tipo de detalhe que tornaria um personagem como esse convincente, McEwan acompanhou por dois anos um cirurgião de verdade, Neil Kitchen, vendo-o executar procedimentos, cirurgias, até mesmo dissecações. McEwan contou então que certa feita, enquanto estava numa sala usando um jaleco e tomando notas, foi abordado por duas jovens internas de neurocirurgia que queriam assistir ao procedimento e o confundiram com o médico. Para saber se já havia aprendido o suficiente, ele não desmentiu o equívoco e ainda se estendeu em algumas explicações absorvidas em sua convivência próxima com Kitchen.
– Elas me agradeceram e foram embora. Fico pensando como elas teriam se saído nas provas – disse, provocando risos.
Mas a criação de um mundo com tanta ênfase nos detalhes nunca será perfeita por maior que seja a pesquisa, e por isso McEwan revelou que volta e meia, quando seus livros já foram publicados, recebe cartas de leitores apontando erros importantes. E sempre responde e considera as correspondências com atenção, porque elas tocam no âmago de seu projeto literário, "A investigação da natureza humana, a sensação de gerar um mundo compartilhado". Uma leitora apontou uma incongruência em uma cena passada em seu The comfort of strangers, romance de 1981 que ganhou edição no Brasil pela Rocco com o título de Ao Deus-Dará, há anos esgotada.
– Os quatro personagens, em uma noite bonita de verão em julho, veem Orion no céu. A leitora me escreveu, senhor McEwan, em julho não se pode ver Orion no céu no hemisfério norte. Se o senhor realmente queria que seus personagens a vissem, talvez devesse tê-los enviado para a Nova Zelândia. Ou para Porto Alegre, ela não escreveu, mas poderia ter escrito – comentou, provocando risos.
McEwan corrigiu o equívoco em edições seguintes, ao contrário de seu colega William Goldwin, autor de O senhor das moscas e personagem de uma anedota que McEwan contou na sequência. Parte importante de O senhor das moscas, sobre um grupo de garotos que, abandonados em uma ilha, cria uma sociedade que logo descamba para a barbárie tribal, são um par de óculos de um garoto míope, usados para fazer fogo.
– Goldwin passou todo o resto de sua carreira recebendo cartas de meninos de 13 anos comentando que era fisicamente impossível fazer fogo com as lentes de um míope, porque elas expandem, em vez de concentrar um foco de luz.
McEwan então arrematou ligando essa procura obcecada do realismo ao seu romance mais recente, Enclausurado, que já parte de uma situação tão fisicamente impossível quanto a das lentes de Goldwin. O narrador é um feto no útero.
– É biologicamente impossível que um feto fale e narre uma histórias, mas considero que meu romance é realista, porque passados os primeiros parágrafos, nos quais estabeleço as bases da ideia, tudo o mais é escrito na tradição do realismo.
Durante a parte de perguntas, Galera comentou que o mote ao mesmo tempo cômico e absurdo do novo romance parecia um resgate em tom e desafio das obras mais confrontadoras e até mesmo livres que McEwan havia escrito no início de sua carreira. O autor de Sábado concordou.
–A partir de uma determinada idade, escritores tendem a se tornar mais reflexivos – comentou o autor inglês, que hoje está com 68 anos.
Ao notar que Enclausurado não deixa de ser também um romance de crime, já que o bebê no útero ouve a conspiração do assassinato de seu pai, tramada por sua mãe e pelo irmão da planejada vítima, Galera perguntou se McEwan alguma vez não havia pensado em fazer uma obra ligada a um gênero mais definido. O britânico respondeu que já havia escrito um romance que era parcialmente de espionagem (Serena), e que, como espectador, era fã de seriados de crime escandinavos. E fez o que provavelmente foi a revelação mais inusitada da noite. Que o romance histórico Reparação, uma obra de feição clássica que começa em 1935,, o romance que se tornou um filme sucesso de público que é provavelmente sua obra mais conhecida, nasceu originalmente como ficção científica.
– Comecei a escrever sobre um jardineiro em uma mansão rural que tinha dispositivos de conexão com a internet diretamente na cabeça. Nessa ficção, os ricos haviam abandonado a tecnologia e passado a viver num cenário passadista como no século 19, deixando a tecnologia digital para os pobres. Claro que essa ideia horrível não sobreviveu a cinco páginas, mas fiquei com o jardineiro e a casa de campo, e dela surgiu Reparação – contou.
McEwan também falou brevemente sobre sua experiência em Hollywood como roteirista do filme Anjo malvado, estrelado por Macauley Culkin, filme cuja visão foi, em suas próprias palavras, vítima de uma "traição". De acordo com o escritor, cometeu o mesmo erro que muitos outros autores ingleses também cometeram ao ir para a Hollywood: pensar que injetaria profundidade e inteligência em filmes que seriam sucesso de público, o que, no sistema da indústria de cinema, era algo muito difícil.
– Quando as pessoas são más umas com as outras, costumam ser más dentro de um padrão de normalidade. Em Hollywood, quando elas são más, são más como Maquiavel descreveu em O príncipe. O tempo todo é como se você vivesse na corte de Cesare Borgia.