Médico psiquiatra que abandonou a profissão para se consagrar como cronista e compositor, Aldir Blanc completou 70 anos na última sexta-feira. O autor de clássicos como O bêbado e a equilibrista (em parceria com João Bosco) e Resposta ao tempo (com Cristovão Bastos) segue compondo, com uma vontade de escrever sobre a vida brasileira atual "borbulhando dentro de mim", como já disse, e repete em texto que ZH publica a seguir.
Fernando Ramos*
Aldir Blanc, a confiar no calendário e na certidão de nascimento do "ourives do palavreado" (título que lhe foi concedido por Caymmi), fez 70 anos no último dia 2. Mas Aldir tem, de verdade, a idade do garoto de quatro a 10 anos que observa e sente a vida trepado nos galhos da goiabeira no quintal da casa número 257 da Rua dos Artistas, em Vila Isabel, no Rio. O compositor e o escritor também são esse garoto (o "menino invisível"), que vivia – e ainda vive – com febre, uma febre "que só vai abrandar (será?) com a minha morte". Febre que é Vila Isabel, paixão e mundo que não param de crescer dentro do poeta. Todo gênio, e Aldir é um deles, sofre disso, e nos faz sofrer junto, porque constrói uma obra para nós, felizes habitantes de um mesmo tempo e língua. Tempo? Mas o que é o tempo? Aldir, talvez sem notar, já deu sua resposta ao tempo: sendo o lírico (essa coisa meio indefinível e misteriosa) que é, o seu tempo contém o passado, o presente e o futuro, e sua obra é imortal, posto que é febre, é chama, humana, demasiada humana.
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Autor de dezenas de clássicos da música popular brasileira, Aldir segue em sua melhor forma, compondo e escrevendo como ninguém, sem o menor sinal de vaidade:
– Não tenho o tipo de vaidade da autoria, pois o que penso de melhor sobre o que é ser compositor é: quanto mais as pessoas cantarem sem saber quem é o compositor da música, melhor. Sempre conto que um dia andava de ônibus e ouvi um garoto começar a cantar, batucar e assobiar loucamente o Kid cavaquinho, enquanto eu, sentado uns dois bancos atrás, tinha que me dominar para não chorar. É só isso o que importa para mim.
Cronista que iniciou publicando no jornal Pasquim nos anos 1970, nosso vascaíno da Vila imortalizou personagens que nunca saíram das ruas e dos botecos do Rio, em crônicas e letras que traduzem a cidade e a “alma encantadora das ruas”. Seu texto, exaltado por Chico Buarque e Ivan Lessa, joga na linha de passe de craques da estirpe de Manuel Antonio de Almeida, Machado de Assis, Lima Barreto, João do Rio, Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos e Rubem Braga.
A política entrou rasgando na vida de Aldir perto dos oito anos, em seguida ao suicídio de Getúlio Vargas, em agosto de 1954:
– Lembro de ver as mulheres da casa chorando e, quando soube o motivo, me deitei na cama dos meus pais e fechei com força os olhos, esperava estar sonhando, acordar e aquilo não ter acontecido.
De esquerda, sem nunca se filiar a partidos políticos, o garoto, de cima da goiabeira do quintal, sempre tocou pedradas com sua atiradeira, alvejando injustiças, pilantragens e falcatruas. Lamentando profundamente o retorno de um momento político que considera cíclico no país, Aldir sentiu no recente e infame 31 de agosto “uma regressão psíquica muito forte ao momento em que com João Bosco fazíamos o Agnus sei”. Indignação e perplexidade. A resposta a esta “estranhíssima situação da vida brasileira atual” deve vir em forma de música, que “com certeza vai aparecer em breve porque a vontade de fazê-la está borbulhando dentro de mim”.
Sua verve afiada e o humor fino de grosso calibre temperado no suave veneno de melodias cheias de ginga, na forma de sambas, choros e serestas, continuam influenciando novas gerações de compositores e sendo gravados aqui e além mar – as cantoras Maria João, Dorina e Mariana Baltar lançarão, em breve, discos repletos de composições de Aldir.
Esse menino-avô, aos 70 anos, sempre febril, "é o mesmo rio/eu me enganei", insiste na paixão e no sonho, citando Chico Buarque quando perguntado sobre os versos mais bonitos da música brasileira (“E ficar olhando as saias de quem vive pelas praias coloridas pelo sol), porque a realidade (o que é a realidade, afinal?), “por mais violenta que seja, não tem força diante do delírio e da febre”.
* Organizador da Festa Literária de Porto Alegre – FestiPoa Literária