Conferencista de setembro do Fronteiras do Pensamento, a psicanalista e historiadora francesa Elisabeth Roudinesco partiu de uma questão delicada para falar à plateia do Salão de Atos da UFRGS: "Ainda podemos sonhar com outra vida?".
A pergunta sai em tom pessimista, mas a emenda é rápida:
– É preciso aliar o pessimismo na inteligência ao otimismo na vontade – começou ela. – A inteligência frequentemente acompanha o pessimismo, adota distâncias críticas em relação à realidade e não se deixa enganar – completou a psicanalista, que juntou sua conferência ao lançamento, em português, pela Zahar, de sua biografia de Sigmund Freud.
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A psicanalista contemplou o tema da "grande virada", que norteia as conferências da edição de 10 anos do Fronteiras do Pensamento, notando que passamos por um período em que "algo grande morreu", mas "o que lhe vai substituir ainda não nasceu". A grande virada, no caso, seria a atual crise da democracia. O fim do comunismo como modelo de desejo por igualdade, simbolizado pela queda do muro de Berlim em 1989, abriu espaço para o capitalismo liberal e, no plano individual, para ideias de autossuficiência. Tanto esse modelo econômico quanto o de subjetividade foram abalados com a crise financeira deflagrada pelo estouro da bolha imobiliária dos Estados Unidos, em 2008. E, ao questionar a economia financeira e a noção de liberdade individual, houve uma mudança de discurso que Elisabeth descreve como obscurantista, baseada no desejo de reviver um passado glorioso, de mais plenitude e felicidade.
– Assistimos a uma contrarrevolução obscurantista em escala mundial – afirmou, citando a ascensão do jihadismo e o discurso da extrema direita europeia como vertentes similares no que tange a idealizar o passado como época brilhante que precisa ser resgatada.
Em um momento em que se vive uma descaracterização dos ideais da Revolução Francesa, com extremistas religiosos rejeitando abertamente a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a ideia de uma Europa de fronteiras abertas sendo abertamente ridicularizada, Elisabeth diz ver o triunfalismo do mercado empobrecendo os povos, levando-lhes a acreditar que a revolta é inútil. A nostalgia de um Velho Mundo provoca inação em relação ao presente, defende a historiadora, que também afirma ver o mesmo fenômeno na América Latina, onde "o populismo se desenvolve como perigo permanente de poder ditatorial", diz.
Voltando-se à psicanálise, Elisabeth junta outro ponto à equação: a medicalização da angústia humana, com drogas altamente eficazes para sanar questionamentos psíquicos, também colaboraria para esse momento de hostilidade e ódio generalizado. Ao utilizar-se drogas para sanar o que chama de sofrimento psíquico social, a medicina e o proeminente vértice do capitalismo que é a indústria farmacêutica eliminam espaço para reflexão sobre os medos do indivíduo:
– Há moléculas para prevenir o medo de perder o emprego durante uma crise econômica, de morrer de uma doença grave ou de atravessar a rua. É um progresso que pode se voltar contra si mesmo.
E esse indivíduo, docilizado por psicofármacos, oprimido pela economia e cercado por fraseado cuja base é a escalada iminente do terror, fica mais propenso a aceitar ideologias autoritárias – seja o imperialismo czarista aventado por Vladimir Putin, na Rússia, ou o conservadorismo ofertado por Donald Trump, nos Estados Unidos – em que segurança e calma são oferecidas em troca de submissão. Segurança e calma sempre descritas "como aquelas de outrora", ressaltando o discurso saudosista criticado pela conferencista.
– Fui criada em um mundo sem celular, sem internet, sem a TV na qualidade que tem hoje, onde o sexo era penalizado, homens e mulheres viviam vidas diferentes e morriam mais novos. Quero voltar para esse passado? Não – argumentou.
Ao concluir sua reflexão e tentar responder à questão proposta ao início da conferência, Elisabeth afirma que, para poder sonhar com outra vida, "não basta decretar o retorno do futuro brilhante". É preciso que tal futuro seja fonte de felicidade – é preciso "saber sonhar", disse.
Com vontade otimista e ações positivas, apoiando-se na herança democrática e cultural como instrumento para o futuro, seria possível começar a pensar em um projeto de nova vida – mas isso está longe de ser fácil, destacou a escritora ao encerrar a conferência:
– É preciso transformar esse desespero em esperança, mesmo sabendo que isso vai levar tempo.