Havia duas dezenas de jornalistas em volta da mesa preparada pela Flip para a entrevista coletiva na Pousada do Ouro, local em que tradicionalmente os autores convidados falam à imprensa. Quando o escritor norueguês Karl Ove Knausgård entrou no recinco, na tarde desta quinta, comentou em inglês com o intérprete que o acompanhava: "isto vai ser interessante. Achava que haveria só uns três ou quatro deles".
Best-seller internacional com sua série de "romances de não ficção" Minha Luta, baseada nas próprias memórias, Knausgård está em Paraty para falar, na Flip, sobre o quarto volume de sua "saga íntima", Uma Temporada no Escuro, que está saindo agora pela Companhia das Letras. Na trama deste quarto episódio da série, Karl Ove narra um período que passou como um jovem professor recém-formado no interior da Noruega, dando aulas para adolescentes um pouco mais jovens do que ele e lutando com a frustração e a sombra do pai alcóolatra, que o assombra no momento em que o jovem se entrega à bebida pesada.
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Com uma obra tão colada na realidade e que usa o próprio nome do autor como protagonista, era mais ou menos inevitável que as primeiras manifestações do autor em Paraty fossem destinadas a falar a respeito do que há de real e do que há de inventando em seu projeto.
– Quando comecei a escrever, parti da premissa de que tudo ali teria que ser experimentado, teria que ser algo que eu vivi. Mas eu não fiz pesquisa alguma para isso, eu estava escrevendo sobre a memória, então há um grande número de detalhes que eu precisei imaginar. Eu posso não me lembrar o que fiz especificamente em algum dia de 1976, mas eu me lembro como era 1976.
Knausgård mencionou que uma das dúvidas que o incomodavam ao longo do projeto foi a própria incerteza sobre sua relevância.
– Durante 10 anos eu tentei ser escritor. Aos 26 anos, eu consegui desaparecer pela primeira vez dentro de minha escrita. E isso é algo que o leitor também faz ao ler um livro, desaparecer no universo da frase, do ritmo, da narrativa. Então comecei a encarar isso como uma espécie de budismo, e aceitar que seria interessante ser um egotista enquanto o escrevia.
Knausgård também comentou como chegou à linguagem direta e alucinante da série. Diz que passou os primeiros meses do projeto lapidando obsessivamente as primeiras páginas, para depois ignorar cuidados e se entregar a um registro mais direto a automático, com todos os problemas que podem vir dessa escolha.
– O meu editor achou que aquelas primeiras páginas estavam muito diferentes do resto e quis cortar, e eu disse não: essa é a única parte em que eu provo que sei escrever – disse, provocando risos.
Para lidar com a polêmica levantada pelo controverso título de sua série de memórias, Minha Luta, o mesmo da infame mistura de biografia e peça de propaganda do líder nazista Adolf Hitler, Knausgård resolveu ler o livro de Hitler e escrever sobre ele no último episódio da série, que completa o círculo abordando a publicação do livro 1. Knausgård se dedicou a pesquisar a história do nazista em biografias variadas para outro projeto ousado para um escritor: tentar entender a humanidade do monstro.
– Li várias biografias, como a de Ian Kershaw, que mostra um Hitler já como encarnação do mal aos 15 anos de idade. E em outras ele aparece nesse ponto como um jovem comum, um tímido que mandava cartões postais para alguém que estava apaixonado. E vi que a adolescência dele poderia ser algo com que eu conseguiria me identificar. Eu quis entender em que ponto se deu a transformação.
Na mesma época em que Knausgård terminava seu livro, ocorreram os ataques de Anders Breivik na Noruega natal do escritor, o que o tornou ainda mais conectado ao tema de como se cria um radical violento. Embora uma década mais velho que o autor dos atentados, Knausgård diz que conseguiu reconhecer o pano de fundo de onde ele havia vindo, no livro de Asne Seierstad Um de Nós.
Knausgård também se disse preocupado com a atual ascensão de sentimentos como o nacionalismo e a xenofobia na Europa, algo que culminou na recente votação em que a população inglesa votou pela saída do Reino Unido da União Europeia.
– As coisas estão mudando, e isso gera crises. E em períodos de crises as pessoas tendem a apelar para soluções mais simplistas. Ao mesmo tempo em que estou preocupado, considero interessante acompanhar um momento em que as coisas estão mudando. A Noruega está fora da União Europeia porque tem uma tradição de independência de 400 anos e não quis desistir dela, e lá estar fora da UE é uma posição de esquerda. Na Inglaterra, é uma bandeira de direita e ficar é de esquerda.