Em O Anjo Exterminador (1962), o cineasta espanhol Luís Buñuel desnudou um grupo de aristocratas ao uni-los todos em um cômodo de uma casa. Não havia nada que de fato os prendesse, mas eles não conseguiam sair dali – e, como consequência da angustiante convivência forçada, ficavam cada vez mais expostos em suas idiossincrasias. No filme brasileiro Uma Noite em Sampa (2016), estreia desta semana nos cinemas, o diretor paulistano Ugo Giorgetti manteve o espírito desse clássico memorável, porém, invertendo a sua lógica: a "prisão" daqueles homens e mulheres burgueses é a própria rua da cidade.
Faz todo o sentido: em São Paulo ou em qualquer outra grande cidade brasileira, o medo e a insegurança social são onipresentes, mas fazem parte especialmente da rotina de quem pertence a um estrato mais elevado e, buscando evitar o contato com os mais pobres, constrói seus próprios muros imaginários. Na trama de Uma Noite em Sampa, o grupo isolado é formado por gente que vive no interior paulista, em grande parte dos casos fugindo da vida agitada na capital. E, certo dia, resolve voltar. De ônibus, para um programa noturno que inclui a ida ao teatro seguida de um jantar em um restaurante.
O problema é que o motorista some, deixando-os do lado de fora do veículo, sem saber o que fazer. Os celulares todos estão lá dentro, então resta esperar. Quando o tempo passa, a madrugada se anuncia, a rua fica deserta, os vizinhos não ousam mais abrir as suas portas e uma ida a um ponto de táxi representa um perigo que eles não querem correr, configura-se seu naufrágio físico e espiritual (lembre que o título original do longa de Buñuel era Los Náufragos de la Calle Providencia, ou "Os náufragos da Rua Providência").
Em seus 75 minutos, a narrativa linear de Uma Noite em Sampa se passa toda em uma única locação – ao lado do Teatro Ruth Escobar, no bairro Bela Vista, região central da metrópole. O veterano Giorgetti (de Boleiros, Festa e o mais recente Cara ou Coroa) e o diretor de fotografia Walter Carvalho não precisam mais do que isso para, com suas imagens escuras a ressaltar a opressão da noite, criar uma série de situações representativas da intolerância do grupo, de seu preconceito, de seu egoísmo e do que mais aflorar quando este vivencia uma situação limite – a lista é longa, veja o filme e comprove.
Seu olhar sobre os mendigos talvez seja o mais chocante, mas a cena em que a personagem de Cris Couto (um dos poucos rostos mais conhecidos do elenco) manda a funcionária de sua empresa à rodoviária é mais rica naquilo que revela sobre sua necessidade de afirmação por meio da exploração dos outros. É trágico, mas ao mesmo tempo cômico – de tão ridículo. Uma Noite em Sampa tem essa veia humorística, o que ajuda a manter o interesse do espectador, que afinal de contas precisa ele próprio lidar com a agonia da lenta passagem do tempo naquele cenário único.
Não fosse por alguns diálogos (e interpretações) um tantinho artificiais, estaríamos diante de um grande filme, preciso em seu retrato da classe média alta com mania de grandeza e espírito arrogante, divertido pelo olhar distanciado e implacável que direciona a esse contexto.
Uma Noite em Sampa
De Ugo Giorgetti.
Com Cris Couto, Susana Alves, Andrea Tedesco, Flavia Garrafa, Roney Facchini, André Correa, Agnes Zuliani, Fernanda Viacava, Carol Portes e Otávio Augusto.
Comédia dramática, Brasil, 2016, 75min.
Em cartaz no CineBancários e no Espaço Itaú, em Porto Alegre.
Cotação: 3 estrelas (de 5).