A história mostra que tempos políticos nervosos não só cobram dos artistas alguma resposta e tomada de posição, como interrogam a própria arte sobre seu papel na sociedade.
Em 1983, quando o Brasil estava em agitação com o movimento que buscava o fim da ditadura e as eleições diretas, um projeto engajou um grupo de artistas a levar um pouco de arte às ruas de Porto Alegre. A iniciativa foi inovadora na cidade ao apresentar trabalhos artísticos em outdoors. Entre os participantes, estava Iberê Camargo, gaúcho reconhecido àquela altura como um dos grandes pintores brasileiros, que se reambientava em seu retorno ao Estado depois de décadas vivendo no Rio de Janeiro.
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A organizadora da exposição artística em outdoors foi a jornalista Angélica de Moraes, que, como setorista da cobertura de artes visuais no 2º Caderno de ZH, buscou ela também dar uma contribuição ao clima político daquela época. Um pouco dessa história é um dos destaques de Iberê Camargo: Diálogos no Tempo, exposição que tem abertura neste sábado, às 11h, na Fundação que leva o nome do artista na Capital.
– O jornal preparava as comemorações de seus 20 anos e resolvi sugerir ao diretor de redação, Lauro Schirmer, uma exposição de outdoors artísticos para assinalar o início do ano comemorativo – relembra Angélica, que assina a curadoria da mostra. – O elenco reuniu desde nomes consagrados como Iberê e Xico Stockinger até o jovem grafiteiro Frantz. Foram 30 outdoors, incluindo ainda artistas, como Magliani, Britto Velho e Vera Chaves Barcellos.
Para a seleção de trabalhos em Diálogos no Tempo, Angélica se concentrou em obras que Iberê realizou na etapa de retorno a Porto Alegre, de 1982 até sua morte em 1994, aos 79 anos. A ideia, conta a crítica e curadora, é apresentar uma visão da obra do artista a partir de algumas chaves de leitura, como o uso de superfícies líquidas, a fusão entre gravura e pintura e o emprego preciso e econômico da linha:
– Usei a metáfora do DNA para apresentar de modo mais acessível ao público em geral o que em "critiquês" se chama de crítica genética. Trata-se de buscar na obra do artista aqueles momentos definidores da sua linguagem, aqueles trabalhos em que as características do estilo surgem. Observa-se como se consolidam e passam a se desdobrar ao longo da trajetória do artista.
Além de pinturas, gravuras em metal, serigrafias, litografias e desenhos, são apresentadas também charges políticas, que sinalizam opiniões e posicionamentos do artista. Os temas são reflexo da época, mas também revelam ser ainda os problemas de hoje – inflação e corrupção entre eles.
– Iberê se indignava com a corrupção dos políticos, defendeu o impeachment de Collor, ridicularizou a ministra da Fazenda Zélia Cardoso de Mello, reclamou da falta de atenção aos aposentados... Uma pauta de assuntos que continua tristemente atual – comenta a crítica e curadora.
Do outdoor de Iberê, Angélica incluiu na exposição os desenhos preparatórios, exibidos pela primeira vez, além de uma documentação fotográfica de sua realização e instalação na Avenida Ipiranga:
– E completei esse segmento da mostra com charges políticas realizadas por Iberê com o pseudônimo Maqui.
ENTREVISTA: Angélica de Moraes, crítica e curadora
No projeto dos outdoors com trabalhos artísticos, como foi a participação de Iberê?
O país vivia a ebulição da campanha das Diretas Já, e os artistas plásticos gaúchos estavam fortemente envolvidos em manifestações e passeatas. Todos os artistas tiveram total liberdade de tema. A maioria fez trabalhos que aludiam à campanha das Diretas. Iberê já apoiava essa causa e usava um macacão dos postos de gasolina Ipiranga com o logo da empresa, nas costas, transformado por ele no slogan "Grito do Ipiranga Já". Mas sua primeira experiência em arte urbana tratou da paz mundial. Ele pintou um trágico mural que remete ao holocausto nuclear e dialoga com a Criação de Adão, de Michelângelo, para a capela Sistina. Creio que esse momento da vida de Iberê diz muito para os tempos atuais.
Que Iberê conheceremos na exposição?
Procurei ser fiel à experiência descomplicada e próxima que Iberê oferecia a todos que o visitavam em sua casa. Fiz diversas entrevistas com ele e algumas vezes ele me convidou a visitar seu ateliê ou jantar com ele e Maria. No título que dei à mostra, Diálogos no Tempo, procuro estender para o percurso expositivo essa atmosfera de conversa que vence a barreira do tempo e se refaz pela arte. Acontece que mesmo amigos antigos podem nos surpreender. Ao pesquisar no acervo da Fundação, conheci várias obras que nunca foram expostas. Uma delas é a série de desenhos Desastres (1987), em que Iberê retratou carcaças de carros jogados em ferro-velhos para nos fazer refletir, como sempre, sobre a precariedade da vida humana. Apesar de mais conhecida, a série de gravuras Manequins (1986) é exibida pela primeira vez completa, inclusive com várias provas de estado – rascunhos, na linguagem técnica da gravura –, a demonstrar a insaciável busca de Iberê pela melhor forma de solucionar uma composição. Ele conseguiu tantos resultados excelentes quanto o número de versões que fez de uma mesma imagem.
Tendo em vista o mote e a concepção da exposição, bem como a seleção de trabalhos, o que podemos entender pela expressão "DNA de Iberê" que consta no texto de divulgação?
Um bom exemplo de "DNA" está na tela Jaguari, uma pequena paisagem que ele pintou em 1941. Ali a gente pode observar a fundação das principais características de toda a pintura que ele desenvolveria ao longo de mais de meio século de trabalho ininterrupto: a tinta farta, as superfícies líquidas, a gestualidade veloz, o desenho estruturando tudo. Outra característica que espero ter deixado bastante nítida no percurso é exatamente o desenho. O traço preciso é o elo de ligação entre todos os trabalhos. Iberê tinha um pensamento gráfico, isto é, tudo que fazia se estruturava a partir do traço.
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A pesquisa lhe apontou novos aspectos sobre a obra de Iberê?
A gente nunca termina de conhecer a obra de um grande artista. Venho aprendendo a ver a obra de Iberê desde quando comecei a escrever sobre artes visuais, no final dos anos 1970. Mas foi com o retorno dele a Porto Alegre, em 1982, que tive o privilégio de conhecê-lo e conversar diante das obras que fazia nesse período. Penso que só podemos tratar com alguma verdade do que conhecemos de perto. Daí porque a maior parte dos trabalhos que selecionei é dos anos 1980, inclusive a monumental tela Fantasmagorias IV, que ele mantinha na sala de visitas de sua casa na Alcebíades Antonio dos Santos e que constitui o núcleo criativo de onde nasceriam os Manequins e muitas outras coisas. Outra conexão que procurei estabelecer foi entre pintura e obra literária. Penso que seu conto O Relógio, publicado no livro No Andar do Tempo; Camargo (Ed. L&PM, 1988), é uma chave importante para a percepção da matéria de suas pinturas. Ali Iberê faz quase um auto-retrato de sua busca desesperada através da arte para capturar o tempo.
A seu ver, no que reside e permanece a potência e a força da obra de Iberê?
Iberê dizia: "Nunca toquei a vida com a ponta dos dedos. Tudo o que fiz, fiz sempre com paixão". A força de sua obra vem dessa entrega total, dessa auto-exigência impiedosa. Nietzsche certa vez afirmou que "quem quer que haja construído um novo céu, só no seu próprio inferno encontrou energia para fazê-lo". Iberê mergulhou fundo na tragédia humana e capturou muitos estados de espírito que também nos habitam.
Iberê Camargo: Diálogos no Tempo
Abertura sábado (9/4), às 11h.
Visitação de terça a domingo (inclusive feriados), das 12h às 19h (último acesso às 18h30min). Até 26 de março de 2017. Entrada gratuita.
Fundação Iberê Camargo (Av. Padre Cacique, 2.000), em Porto Alegre, fone (51) 3247-8000.
Estacionamento: no subsolo da Fundação, com entrada pela Av. Padre Cacique, no sentido Zona Sul.