Há artistas que esperam calor do público e há artistas que já trazem esse calor e incendeiam seus fãs. Elza Soares está certamente no segundo grupo, embora seja difícil garantir quem estava com a emoção mais à flor da pele – a cantora ou a plateia? – no apoteótico show que ela realizou nesta sexta-feira à noite no Teatro do Bourbon Country, em Porto Alegre.
Uma inquietação se manifestou logo depois da apresentação de abertura de Ian Ramil, por volta das 21h10min, quando parte do público começou a gritar "Libera! Libera!", disputando decibéis com o som dos anúncios publicitários no telão do teatro. Uma mulher se dirigiu à plateia para afirmar que estudantes estavam sendo barrados, mesmo tendo em mãos documentos que comprovavam o direito à meia-entrada. A produção local da Opus Promoções, por outro lado, me disse ao final do show que alguns estudantes não tinham os documentos oficialmente aceitos.
O impasse durou até cerca de 21h30min, meia hora depois do horário previsto para o início da atração principal, quando os estudantes finalmente puderam entrar. Os gritos de "Libera!", agora entoados por grande parte dos espectadores, só terminaram quando as luzes foram apagadas e as cortinas revelaram a imagem de Elza Soares, colorida e imponente, reinando em um verdadeiro trono sobre uma plataforma que a deixava em um nível acima de todos. À sua frente, uma plateia de ingressos esgotados. Havia gente sentada nas escadas e em pé nas laterais.
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Elza chegou chegando e pedindo barulho, ao que foi prontamente atendida pelos fãs. Antes e ao final de cada música, ouviam-se gritos de admiração, aos quais ela reagia com agradecimento ou estalando um beijo ao microfone. "Também amo todos vocês", declarou. Durante uma hora e meia, esta protagonista soberana da história da música brasileira percorreu o repertório de seu mais recente e elogiado álbum, A Mulher do Fim do Mundo, eleito o disco do ano de 2015 em enquete realizada com críticos musicais pelo colunista de Zero Hora Juarez Fonseca.
Acompanhada por uma competente banda dirigida pelo baterista Guilherme Kastrup, Elza fez um show intenso em volume e em emoção. Nas letras das canções e em sua comunicação, presenteou os gaúchos com uma injeção de lucidez, conclamando luta por um Brasil melhor. Os arranjos modernos do disco e do show, que misturam sons acústicos, elétricos e eletrônicos, comprovaram: estava ali uma cantora que, definitivamente, não vive do passado. Muito pelo contrário, ela garantiu: "Está só começando".
O repertório incluiu a faixa-título do disco (composta por Romulo Fróes e Alice Coutinho), Luz Vermelha (Kiko Dinucci/Clima), Firmeza?! (Rodrigo Campos) e Pra Fuder (Kiko Dinucci), entre outras. Antes de Maria da Vila Matilde (Douglas Germano), canção que denuncia a violência de gênero, Elza chamou a atenção das mulheres da plateia: "Esse assunto é sério. Não é brinquedo". A plateia cantou junto o refrão e repetiu algumas vezes, a capela, ao final, incentivada pela cantora: "Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim". Ela ainda reforçou: "Então, vocês vão denunciar?". Novo petardo com A Carne (Seu Jorge/Marcelo Yuca/Wilson Capellette), conhecida faixa do disco Do Cóccix até o Pescoço (2002): "A carne mais barata do mercado é a carne negra".
O cantor e ator brasiliense Rubi subiu ao palco para uma performance eletrizante interpretando Benedita (Celso Sim/Pepê Mata Machado/Joana Barossi/Fernanda Diamant). Dançava e se contorcia em cena, enquanto sua sombra o duplicava, malemolente, na parede lateral do teatro. Depois, literalmente, descansou no colo de Elza. "Tá bom o colinho? Tá gostoso?", perguntou ela.
Entregue, o público não arredou o pé até o final, como já esperado. Ela voltou para o bis reverenciando o passado com dois grandes sambas em arranjos modernizados, mas não menos gingados. Volta por Cima (Paulo Vanzolini) fez o público dançar com os célebres versos "Levanta, sacode a poeira / E dá a volta por cima". E, para encerrar a noite, Pressentimento (Elton Medeiros/Hermínio Bello de Carvalho).
Elza agradeceu novamente e, já com as cortinas fechadas, ainda teve tempo de fazer um último agrado aos gaúchos. "Viva Lupicínio Rodrigues!", gritou, em homenagem ao compositor de Se Acaso Você Chegasse, samba que ela ajudou a popularizar.