A ditadura imposta pelo golpe 1964 estava oficialmente sepultada desde o começo de 1985. Mas, com o Brasil ainda não vivendo plenamente em uma democracia em 1986, vociferar em um filme pesados palavrões contra militares de diferentes patentes era uma dupla provocação: colocava a plateia diante de uma sessão de catarse coletiva e também corria o possível risco de despertar fantasmas da repressão. Não houve, porém, maiores sobressaltos fora das salas de exibição, e o curta-metragem O Dia em que Dorival Encarou a Guarda cumpriu sua trajetória como um dos marcos do cinema brasileiro.
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Segundo curta assinado em parceria por Jorge Furtado e José Pedro Goulart, que estrearam juntos no cinema com Temporal (1984), O Dia em que Dorival Encarou a Guarda terá uma sessão especial comemorativa de seus 30 anos realizada neste domingo, às 19h30min, na Sala Eduardo Hirtz da Casa de Cultura Mario Quintana, com ingresso a R$ 7. Furtado e Goulart estarão presentes para conversar com o público.
Dorival adapta uma passagem do romance O Amor de Pedro por João, lançado por Tabajara Ruas em 1982, no qual o autor narra andanças e dramas de exilados políticos perseguidos pelas ditaduras militares do Brasil e do Chile. O personagem-título é um corpulento homem negro (vivido por João Acaiabe) que se encontra encarcerado em um quartel. Ele deseja tomar um banho para aliviar o calor. Pede primeiro ao soldado (Pedro Santos), depois ao cabo (Zé Adão Barbosa), ao sargento (Sirmar Antunes) e, por fim, ao tenente (Lui Strassburger). A cada negativa, ocorre um troca de xingamentos depreciativos, incluindo manifestações racistas e homofóbicas.
– A história do Dorival foi antecipada na revista 80, da (editora) L&PM – lembra Furtado. – Estávamos procurando um tema para nosso segundo curta. Eu preferia um conto do Julio Cortázar, A Escola de Noite, mas perdi na votação para o Zé Pedro, o Giba (Assis Brasil) e a Ana Luiza (Azevedo) – que assinam o roteiro com Furtado.
Goulart complementa:
– Nós trabalhávamos à época na TVE. Um dia eu estava assistindo ao (programa infantil da TV Cultura)Bambalalão e vi que o Acaiabe tinha de ser o Dorival. Chegamos a fazer um teste com o Sirmar, mas o personagem tinha de ter o porte imponente do Acaiabe, e fomos buscá-lo em São Paulo.
Embora o tom politicamente incorreto do curta possa soar mais agressivo em 2016, Furtado acredita que nada precisaria ser filtrado se fosse filmado hoje:
– O Dorival ataca cada um no seu ponto fraco, como estratégia de defesa. O racismo é presente na vida real, deve estar representado também na ficção, mesmo em tom de comédia, para mostrar que existe e como os racistas são ridículos.
O Dia em que Dorival Encarou a Guarda teve sua primeira sessão pública em 11 de abril de 1986, no Festival de Gramado, no qual ganhou Kikitos de melhor curta nacional (dividido com outras duas produções) e melhor ator (João Acaiabe). A estreia comercial foi nesse mesmo 24 de abril, na Cinemateca Paulo Amorim da CCMQ, que recebe novamente o filme neste domingo. É justo destacar a vigorosa permanência desse curta como símbolo da maturidade de uma nova geração de cineasta gaúchos que ali despontava e, reverenciar sua relevância humanista, exemplo da arte como arma de combate à opressão e à intolerância.
Furtado seguiu mais alguns anos no curta-metragem, realizando títulos importantes como Ilha das Flores (1989), e já lançou seis longas. Goulart ergueu uma destacada carreira na publicidade. Em maio agora, ele lança seu primeiro longa, Ponto Zero, muito bem recebido por público e crítica no Festival de Gramado de 2015.
Uma noite em Havana
A história é tão peculiar que mereceu registro da escritora Zélia Gattai em seu livro A Casa do Rio Vermelho. José Pedro Goulart lembra a razão: ele e Jorge Furtado foram protagonistas, com a escritora baiana, de um episódio ocorrido em dezembro de 1986 que encerrou aquele glorioso ano de conquistas de O Dia em que Dorival Encarou a Guarda:
– Tínhamos apenas um cópia do filme com legenda em espanhol, enviada para o Festival de Huelva, na Espanha (onde foi premiado pouco antes como melhor curta de ficção), e fomos para a Cuba com a certeza de que os espanhóis enviariam o filme a Havana em tempo. Por garantia, levamos uma cópia sem tradução, no espírito "vai que...".
A cópia legendada não cruzou o Atlântico, e o filme acabou não participando da seleção do festival. O júri era presidido por Jorge Amado, marido de Zélia, que por insistência dos gaúchos convenceu os jurados a assistirem a Dorival. Mas, sem legendas em espanhol, explicou o escritor, seria uma missão muito complicada, quase impossível
– Foi então a Zélia prontificou-se a fazer uma tradução ao vivo durante a sessão – lembra Goulart.
Em seu livro, a escritora descreveu a cena: “E traduzi, mal e porcamente, mas traduzi, e eles entenderam tudo. O Dia em que Dorival Encarou a Guarda ganhou, merecidamente, nesse festival, o primeiro prêmio de curta-metragem”.
Surpresa maior, lembra Goulart, foi receber o troféu das mãos de Francis Ford Coppola, o grande cineasta americano:
– A gente se olhou, e eu brinquei com o Furtado: “Já pensou se ele nos chamar ao palco?”.
– Quando anunciaram o nome do Coppola para entregar o prêmio de melhor curta, o teatro Karl Marx, lotado com mais de 5 mil pessoas, veio abaixo. Até então, não se costumava dar prêmios aos curtas em Havana – complementa Furtado.
Assista ao filme.