Todas as (raras) vezes em que um filme de Apichatpong Weerasethakul chega aos cinemas, a história se repete: aqueles que não embarcam em suas viagens oníricas e sensoriais torcem o nariz, enquanto outros, incluindo grande parte da crítica especializada, se põem em êxtase diante da magia de suas imagens. Ou, sendo preciso, de suas não imagens – a arte do cineasta tailandês é desafiadora porque, sob certo aspecto, fala sobre aquilo que está além do que somos capazes de enxergar.
Foi assim com os clássicos contemporâneos Mal dos Trópicos (2004), Síndromes e um Século (2006) e Tio Boonmee (2010), é assim com sua mais recente obra-prima, Cemitério do Esplendor (2015), que está em cartaz em Porto Alegre. Entretanto, arrisco-me a dizer que o novo filme, além de ser o mais fluido e o mais político de seus longas-metragens, de alguma forma ressignifica toda a sua obra pregressa.
Até então, Weerasethakul parecia interessado em testar os limites da linguagem a partir de construções não lineares que questionavam o que estava contido – e o que se fazia perceber – em cada plano, ou sequência. Daí a opção por situações ambíguas e narrativas espelhadas, quando não divididas em duas partes, instigantes na forma como se complementavam. Cemitério do Esplendor já foi chamado de linear, reducionismo que acredito ser prejudicial à compreensão de seus propósitos. Mas, sem dúvida, tem espelhamentos mais claros, diretos, embora não menos místicos – os reis do passado projetando-se nos soldados do presente, a deformação física a sublinhar o desapego aos corpos e à materialidade, o elogio ao luxo ante as ruínas que restaram dos velhos tempos de fausto.
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A protagonista é Jenjira (Jenjira Pongpas), voluntária a cuidar de militares acometidos por uma estranha doença do sono. Ela cria interesse por Itt (Banlop Lomnoi), que nunca recebe visitas. E se aproxima da médium Keng (Jarimpattra Ruengram). Conforme essas relações se aprofundam, nos damos conta de que (desculpe o spoiler) o estado de torpor é consequência de atos abusivos cometidos por homens de castas superiores que viviam naquele lugar.
É preciso ter em mente que, na lógica budista de Weerasethakul, pessoas, animais, plantas e vidas passadas habitam o mesmo plano. As relações se estabelecem através do tempo e da própria matéria. Na jornada transcendental de Cemitério do Esplendor, configura-se um tipo de abuso de poder que, até então, não parecia tão evidente em sua, vamos definir assim, cartilha de princípios. Vale lembrar que a Tailândia sofreu um golpe militar em 2014, e que este é seu primeiro longa desde então. E que – adendo dedicado a quem já o assistiu e não está convencido da interpretação proposta neste texto – há outros indícios de que se trata de um filme político. Dois deles: as sugestões contidas nas imagens da misteriosa escavação levada a cabo pelo governo e a paranoia popular de que há agentes infiltrados (do FBI!) entre quaisquer rostos não familiares.
Weerasethakul talvez tenha sido igualmente contundente antes – a crítica ocidental é que pode não tê-lo interpretado para além de seu exotismo. Em Mal dos Trópicos, por exemplo, há uma complexa construção que põe, lado a lado, a rotina comezinha de um vilarejo pobre do país e seu sofisticado imaginário, capaz de criar as lendas mais fantásticas. O quanto de política há em uma interpretação distanciada da vida em um lugarejo que é capaz de ser, simultaneamente, primitivo e civizilado, puro e influenciável?
Não se trata de uma pergunta retórica, mas de uma dúvida genuína. Em Cemitério do Esplendor, a sequência em que Jenjira e Keng passeiam pelo palácio/floresta (local em suspensão, espaço de transcendência, lugar e não lugar), uma das mais instigantes dos últimos tempos, constitui uma clara busca por respostas – dos personagens e, por consequência, do autor que os forjou. Onde estamos? O que se passa à nossa frente? Qual é o contexto que nos define? Não há soluções objetivas, é verdade. Contudo, o novo filme parece mais perto delas, na comparação com os anteriores.
"O sono prolonga a existência. Você viverá por muito tempo. Poupe-se para um futuro melhor", diz Jenjira a Itt, encarnado em Keng (!), enquanto caminham pelos escombros deixados pelo "progresso". É uma síntese da dicotomia que molda o universo deste singular cineasta: denúncia e resignação, medo e esperança, tudo se sobrepõe de modo que sonho e realidade também se fundam. "Só quero acordar", Itt havia dito antes, por meio de Keng. Sonhar é necessário – se não for dormindo, melhor ainda, indica este novo Apichatpong Weerasethakul.
CEMITÉRIO DO ESPLENDOR
De Apichatpong Weerasethakul.
Com Jenjira Pongpas, Banlop Lomnoi e Jarimpattra Ruengram.
Drama, Tailândia, 2015, Duração: 122 minutos. Classificação etária: 12 anos.
Em cartaz na Cinemateca Paulo Amorim, em Porto Alegre.
Cotação: ótimo.