Em música, a expressão "maravilha de um sucesso" só costuma ser depreciativa, referindo-se (ao menos no mercado fonográfico como até então se conhecia) a grupos que tiveram um rastilho de popularidade jamais repetido por conta de uma única canção. No mundo da literatura também há "maravilhas de um sucesso só", mas o rótulo jamais será desdenhoso, se esse sucesso foi o bastante para que um livro perdurasse ao longo das marés ideológicas e políticas que fixam um cânone. Pelo contrário, como o caso da autora recentemente falecida Harper Lee mostra, às vezes perturbar esse sucesso único com o acréscimo de outra coisa de procedência duvidosa pode causar mais desconfiança do que aprovação.
Nascida em Monroeville, Alabama, em 1926, Harper Lee publicou ao longo de mais de meio século de atividade literária apenas um romance, mas que romance. Depois de atuar esporadicamente como jornalista, de estudar literatura inglesa e trabalhar como agente de viagens, Lee concluiu em 1957 uma versão de um romance inspitado em sua vida no interior do Alabama. A conselho de sua editora, Tay Hohoff, reescreveu mais de uma vez a narrativa, dando ênfase a um episódio marginal originalmente mencionado apenas de passagem: narrado o digno advogado branco Atticus Finch, na cidadezinha de Maycomb, Alabama (uma versão ficcional de Monroeville), indo contra as pressões da cidade e fazendo o melhor que pode para defender um negro falsamente acusado de estuprar uma mulher branca, nos anos 1930.
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Finalmente publicado em 1961, o livro se tornou não apenas um sucesso comercial, mas um marco de uma época. Era um romance que dialogava com um tema recente: a luta dos negros por direitos civis (não por acaso, apenas seis anos antes, no mesmo Alabama natal de Harper Lee, a professora negra Rosa Parks se recusara a ceder lugar a um branco em um ônibus, começando uma grande mobilização que marcou o início de uma ampla luta antisegregacionista nos Estados Unidos).
Surgido em uma época em que as leis de segregação já começavam a ceder, Atticus não deixa de ser uma imagem ideal, embora minoritária, de um branco que a seu modo entende e aceita o movimento negro. Visto pelos olhos da narradora, a espevitada menina Scout, Atticus, pai da protagonista, se tornou uma imagem ideal. Não foram poucas as crianças que foram batizadas com seu nome ou os leitores que se dedicaram a estudar Direito inspirados por seu exemplo. A infância de Scout também se tornou uma descrição arquetípica da vida bucólica no interior agrário dos Estados Unidos - e curiosamente, um amigo de infância da autora, o também escritor Truman Capote, é a base para um dos personagens mais cativantes do romance, o menino Dill, um garoto asmático e pernóstico que faz amizade com Scout e seu irmão mais velho.
Lee não escreveu mais nenhum romance desde então, como se tivesse dito tudo o que precisava. Apesar de ter participado de algumas pesquisas que poderiam ter rendido um livro - entre elas uma viagem a Holcomb, no Kansas, para acompanhar a investigação de um crime em companhia de seu amigo Capote. Ele voltou de lá com a história do clássico do jornalismo A Sangue Frio. Ela se dedicou a outras tentativas de encontrar um tema para um livro, sem sucesso.
Em 2007, Lee, já idosa, sofreu um derrame e se recolheu da vida pública. Em 2014, sua irmã e advogada, Alice, morreu, e os negócios da escritora passaram a ser geridos por uma advogada da firma, Tonja Carter. Foi aí que surgiu o polêmico segundo livro de Harper Lee.
Vá, Coloque um Vigia, é uma espécie de continuação de O Sol é Para Todos, mas na verdade se trata do manuscrito original antes das alterações pedidas por Hohoff. Embora sucesso editorial, surgiu acompanhado de uma nuvem de polêmicas, tanto fora quanto dentro de suas páginas.
Na história originalmente escrita por Lee, mas ambientada 20 depois de O Sol é Para Todos, o virtuoso Atticus não é mais o homem nobre de quem ela se recordava na infância, e sim um velho assustado e racista que frequenta associações dos "bons cidadãos" de Maycomb, preocupados com a audácia dos negros locais, incendiados pelos movimentos de direitos civis a não mais "aceitarem seu lugar".
Embora não seja uma obra com o mesmo fôlego de seu primeiro livro, Vá, Coloque um Vigia, título retirado da Bíblia, em Isaías 21:6, a seu modo encerra com uma nota irônica uma saga de autocongraçamento branco. Atticus, o "senhor generoso" e algo paternalista dedicado a levar justiça aos negros talvez não esperasse, como muitos de sua geração, que a mudança social fosse tão profunda - e na qual os próprios negros afirmassem suas vontades, sem esperar pela generosidade cristã da comunidade sulista.
Um twist que de certo modo legitima um problema ético também surgido com a publicação: ler ou não um livro que Lee teve meio século para publicar e não o fez, um livro que já veio a público como sensação comercial em um momento em que talvez sua autora não tivesse mais como consentir com sua edição? O Sol é Para Todos é uma obra maior, e tem lugar assegurado na grande literatura. Vá, Coloque um Vigia, talvez não dure tanto, mas tem os méritos de abrir uma nova dimensão de leitura para o clássico que o precedeu: a capacidade de nos lembrar de que qualquer história, por mais apaixonante que seja, é um recorte no tempo, e se olharmos com paciência suficiente para o futuro, pouca coisa continua de fato simples.
Por isso, a literatura tem de agradecer à senhora Lee. Este leitor agradece.