Disponível na Netflix desde sexta-feira, o drama de longa-metragem Beasts of No Nation constitui um marco da indústria do audiovisual. Menos por suas qualidades técnicas, mais pela estratégia de lançamento: trata-se do primeiro longa produzido pela gigante dos conteúdos sob demanda a ganhar os cinemas. Na verdade, meras 27 salas dos Estados Unidos o exibem desde sexta, e menos ainda na Inglaterra. A quantidade é ínfima, mas suficiente para cumprir as exigências da Academia de Hollywood e, com isso, habilitar o filme a concorrer ao Oscar (e também ao Bafta, o Oscar britânico). Nos outros países, incluindo o Brasil, a única opção é vê-lo em casa.
O lançamento simultâneo em plataformas diferentes não é novidade. Nos EUA, Steven Soderbergh lançou Bubble nos cinemas e na TV fechada no mesmo dia de janeiro de 2006. Em Porto Alegre, em dezembro de 2007, Carlos Gerbase apresentou 3 Efes ao mesmo tempo no Canal Brasil, no portal Terra, na TVCOM e em DVD, além de algumas salas de cinema. Nem o boicote dos exibidores, que segundo reportagens da imprensa norte-americana quase impediu Beasts of No Nation de chegar ao circuito, é inédito: Soderbergh também teve de enfrentar a fúria dos donos dos cinemas ao desrespeitar as convenções que indicam que um filme deve primeiro ganhar a tela grande para, semanas depois, ser lançado em home vídeo e na televisão.
O que realmente difere o projeto da Netflix é a... Netflix.
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A empresa, que tem 69 milhões de assinantes em mais de 50 países (e chegará nos próximos meses a Itália, Espanha e Coreia do Sul, entre outros), é cautelosa nas manifestações sobre sua ambição de mudar a indústria. Em geral, não atende a pedidos de entrevista. E, quando o faz, prefere comunicados genéricos não raramente evasivos. Na semana passada, ZH conversou por telefone com Marcela Kartaszewicz, da equipe da Netflix Originals, desde Los Angeles. Indicada pela assessoria de imprensa da empresa, ela falou sob a condição de não ter frases reproduzidas entre aspas. Disse não ter autoridade para falar pela Netflix - e quem a tem não estaria disponível nas próximas semanas. Trata-se de um subterfúgio recorrente usado pela corporação para não personalizar suas estratégias.
É o espectador quem deve escolher como e quando quer ver um filme, defende a Netflix. A empresa refuta a ideia de "boicote" dos exibidores, chamando os donos dos cinemas de "parceiros". Acredita que só 27 salas aceitaram exibir Beasts of No Nation porque este é o tamanho do filme. Não têm sido os blockbusters os vencedores do Oscar - e vencer o Oscar é um objetivo concreto. Mais adiante, com o mercado "amaciado", os lançamentos da sequência de O Tigre e o Dragão (primeiro semestre de 2016) e da comédia The Ridiculous Six, com Adam Sandler (talvez já em dezembro), devem ter estratégias mais agressivas.
Com o lobby adequado, Beasts of No Nation tem tudo para ser mais do que lembrado no Oscar. O pequeno protagonista, Abraham Attah, tem atuação impressionante como um menino que fica órfão e é cooptado por um líder rebelde (Idris Elba) para lutar na guerra civil de um país africano (não identificado).
Seu diretor, Cary Fukunaga, fez cinema (é dele Jane Eyre) e depois foi para a TV (True Detective), antes de desembarcar na Netflix. Percorreu um movimento simbólico das mudanças pelas quais a indústria está passando. A migração de técnicos de Hollywood para a televisão, aliás, é um ponto fundamental dessas mudanças. Foi graças ao investimento de empresas como HBO, Showtime e agora Netflix, mas também à presença dos grandes nomes do cinema, que produções originais para a outrora chamada tela pequena ganharam prestígio.
Nesse cenário, Beasts of No Nation também não representa exatamente uma novidade. São vários os telefilmes badalados nos últimos anos - alguns deles, inclusive, mais elogiados do que os mais festejados títulos lançados de maneira convencional, primeiro no cinema, depois em outras plataformas (veja uma lista com 10 deles aqui). O longa de Fukunaga é, isso sim, uma espécie de ponto culminante desse movimento. Dada a força e a ambição da Netflix em sua estratégia de lançamento, tem tudo para se estabelecer como o grande marco dessa nova realidade.
Beasts of No Nation
De Cary Fukunaga
Drama, EUA, 2015, 137min.
Sem estreia prevista para os cinemas.
Disponível na Netflix.