Desde que Prometeu roubou dos deuses para presentear os homens, o fogo exerce sobre nós sua mágica atração. Gaston Bachelard, em A Psicanálise do Fogo, afirma que "antes de ser filho da madeira, o fogo é filho do homem". A dança das labaredas que voluteiam diante do nosso olhar magnetizado é ao mesmo tempo destruição e renovação. Destrói-se o material comburente e renovam-se as aspirações da alma que contempla o bailado das línguas vermelhas que lambem o ar e brilham no espelho dos olhos.
Foi ao redor do fogo de chão que os guaranis, senhores destas plagas antes da chegada do colonizador europeu, exercitaram, nas longas noites de inverno, o gosto pela palavra. Deve ser essa a origem do nosso apreço pela contação de causos à beira do fogo. A palavra parece levitar diante das chamas, e as horas se esparramam levadas pela charla desprovida de pressa. Daí as lendas, as superstições, as anedotas - a invenção narrativa de uma cultura singular.
Ao final dos 1940, uma gurizada na capital gaúcha resolveu percorrer o caminho legado pelos fazeres ancestrais. Palavras de Barbosa Lessa: "Foi então que o estudante Paixão Cortes, com 19 anos de idade, deu o toque de reunir, em setembro de 1947 [...] E acendeu a primeira Chama Crioula". No dia 7 de setembro, o jovem Paixão colheu uma centelha da pira da pátria, seguramente, sem a mínima noção de que aquele gesto criava um símbolo, para que continuasse ardendo até a data comemorativa do início da epopeia farrapa - 20 de setembro. Foi um engendro prometeico aquele gesto do guri.
Pois, neste 12 de julho, na histórica e emblemática Colônia do Sacramento, que nasceu portuguesa, e depois passou ao domínio hispânico, trocada pelos Sete Povos das Missões, será acesa a Chama Crioula. Pela primeira vez o evento que marca o início dos Festejos Farroupilhas ocorrerá fora do solo rio-grandense. Seremos sempre um tanto do que já fomos projetados no que ainda vamos ser. Tradição: o ancestral friccionando madeira contra madeira magicamente encantado pelo fascínio do fogo.