É sempre surpreendente perceber o quanto aromas e sabores são marcantes. Quem nunca sentiu um cheiro ou um gosto que o transportou ao passado? Assim é também com a música.
Dias atrás me bandeei pro outro lado do Uruguai para reviver os momentos de minha vida que foram embalados pelo disco Mandando Lenha. Quantos finais de tarde mateei acompanhada da voz do Bebeto Alves, do violão do Lucio Yanel, do baixo do Clóvis "Boca" Freire e dos versos e melodias do Mauro Moraes. Mesmo sem entender muito o porquê naquela época, o álbum era uma espécie de cordão umbilical da guria recém-chegada, tentando encontrar o elo com tantos lugares que carregava comigo para uma vida na Capital.
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Bebeto Alves lança "Milonga Orientao"
Lembro de visitar Uruguaiana nas filmagens de Neto Perde Sua Alma e conhecer o Bebeto por lá. Fui assistir ao show dele ansiosa por escutar aquelas canções que se tornavam trilha da minha nova casa. Nada... Bebeto não cantou as "minhas músicas", nem ali, nem nunca durante esses 18 anos.
O disco - que integra uma trilogia com Milongueando uns Troços, de 1995, em que canta junto ao Zé Cláudio Machado, e o Milongamento (1999) - não tinha ido pro palco. Daí até chegar ao Centro Cultural Nestor Kirchner em Buenos Aires foi fácil: escutar por acaso o disco em casa, publicar no Facebook, receber comentários de órfãos desse trabalho como eu, falar com o Carlos Villalba, que armou toda a história e colocou o show numa noite de gala junto ao grupo de tango La Chicana na capital portenha. Eu estava lá. E visitei minha própria história a cada acorde do Marcello Caminha, a cada palavra do Bebeto e na sonoridade incrível do baixo acústico do Boca Freire.
O interessante é perceber o quanto a identidade regional é sempre atual. Nas metáforas da pampa, como disse Bebeto no palco, há muito para se entender sobre a perspectiva de convivência que tanto precisamos nos tempos atuais; entender e respeitar o diferente, tal como o homem rural presente nos versos "Eu posso não gostar duns troço, mas o que é nosso é sempre bom cantar...". Assim como eu, outros gaúchos estavam por lá, e deles ouvi depoimentos de uma memória afetiva com esse trabalho. Na integração com os tangueros, Bebeto nos brindou com sua Milonga Orientao, parceria com Humberto Gessinger, em que deixa claro onde se encontra consigo: "Depois de muito som, de luz e sombra, só então descobri que sempre estive aqui".