Ao ser lançado, em 2001, o monumental documentário Jazz, de Ken Burns, chegou a ser classificado como o melhor projeto deste gênero musical em décadas. A série de quase 20 horas esmiuçava a história do jazz e de seus expoentes, não se limitando a apresentar suas obras, mas contextualizando-as, fazendo-as serem entendidas para além da subjetividade com que a arte costuma "bater" no espectador.
Não era preciso ser fã do gênero para se deliciar com Jazz. Essa ideia também se aplica a dois filmes recém-lançados, sobre duas das maiores artistas da música negra norte-americana do século 20, que teve nos anos de ouro do jazz alguns de seus melhores momentos: Bessie, drama sobre a cantora Bessie Smith lançado pelo canal HBO, e What Happened, Miss Simone?, documentário sobre a cantora, pianista e compositora Nina Simone produzido e disponibilizado pela Netflix. São ambos reveladores ao associar as personalidades das divas aos eventos que marcaram suas vidas.
Confira playlist selecionada com canções de Bessie Smith:
What Happened, Miss Simone? ainda mais do que Bessie, porque o que se vê na tela é a Nina real, em toda a intensidade com que viveu - e cantou. O ficcional Bessie tem Queen Latifah, em atuação consagradora, interpretando as canções da "Imperatriz do Blues". Na trama, a dura infância de Bessie Smith só aparece em flashbacks rápidos, mas os traumas se refletem na personalidade agressiva da artista que cantava de alma escancarada - e depois, às vezes, precisava fazer uso de violência física para não ser enganada e receber os cachês prometidos.
Bessie namorou e brigou com homens e mulheres e bateu de frente com todos que a oprimiram - não foram poucos. Fez a transição entre as mamas do blues e as divas que surgiram com o jazz, cem anos atrás, abrindo o caminho para estrelas posteriores como Billie Holiday e Ella Fitzgerald e, não é exagero dizer, até para os astros do rock'n'roll. A admiração de Billie Holiday por ela, aliás, é citada no filme de Dee Rees - quando, passada a popularidade dos anos 1920, Bessie entrou em depressão e precisou ser convencida pelo produtor John Hammond a voltar a cantar, reinventando-se ao aderir à onda do swing na década de 1930.
Dee Rees condensa essa história de maneira eficiente no longa, usando elipses bem sacadas e aproveitando a entrega de Queen Latifah a este que a atriz definiu como "o projeto de sua vida". Apesar de sua grande atuação, faz falta ouvir Bessie Smith. O bom é que, diferentemente do tempo dos LPs, graças à internet, hoje não é difícil encontrar sua voz rasgada e dolorida.
Confira playlist selecionada com canções de Nina Simone:
Em What Happened, Miss Simone?, o que o espectador sente falta é de performances alongadas de Nina Simone - e de músicas como I Shall Be Released, He Needs Me e Spring Is Here, que não aparecem na narrativa. O documentário de Liz Garbus prefere trechos curtos de suas canções, que são costurados com as falas dos entrevistados, ilustrando-as. Dá vontade de mais música, mas a opção funciona, e muito bem, porque, como no caso de Bessie Smith, mais do que a técnica vocal, são os acontecimentos da vida lá fora que explicam a força de Nina no palco.
É difícil esquecer o rosto expressivo da cantora nos momentos de fúria, nos quais vomitava seus demônios em quem estivesse à frente - a plateia, inclusive, como no caso do festival de Montreaux de 1976, que Liz Garbus acompanhou in loco. Nina foi rejeitada em bancos escolares por ser negra e em rádios por seu radical ativismo social. Foi surrada pelo marido e incompreendida em sua personalidade bipolar. Em sua trajetória, contudo, nada se justifica por relações simplórias de causa e efeito. A diretora consegue dar conta do grande mosaico de fatos em torno da estrela em função da impressionante sinceridade dos depoimentos de Nina e do próprio Andrew Stroud, militar que assumiu os papéis de empresário e marido da cantora.
O que eles dizem explica a forma com que ela canta. Tanto quanto Bessie, What Happened, Miss Simone? joga por terra a ideia, retrógrada mas ainda recorrente, de que certos fatos da vida privada dos artistas são irrelevantes no âmbito público.
Na foto acima, Queen Latifah em cena de "Bessie"
Quem foram
BESSIE SMITH (1894 - 1937)
A "Imperatriz do Blues", muito popular nos EUA ao longo dos anos 1920, morreu em acidente de carro logo após se reinventar como cantora de jazz, na década de 1930, deixando cerca de 180 canções gravadas e lançadas, em sua maioria em compactos duplos pelo braço da Columbia dedicado a "artistas de cor" (negros).
Foi a primeira diva do jazz, influenciando todas as cantoras do gênero surgidas nos anos 1930 e 40, incluindo Billie Holiday. Entre as canções mais celebradas em sua voz poderosa, estão Mamas Got the Blues, Midnight Blues, Down Hearted Blues e
Need a Little Sugar in My Bowl.
O filme: Bessie é uma ficção dirigida por Dee Rees e tem Queen Latifah na pele da cantora, além de Michael Kenneth Williams (como seu marido, Jack Gee), Bryan Greenberg (o produtor John Hammond) e MoNique (sua mestra Ma Rainey). Drama, EUA, 112min. Em exibição nos canais HBO.
NINA SIMONE (1933 - 2003)
Cantora e pianista de formação clássica, foi um grande nome da música negra (e do ativismo social pelos direitos civis) nos anos 1960 e 70. Nos 1980, graças ao sucesso de My Baby Just Cares for Me (usada num comercial do perfume Chanel Nº 5), tornou-se uma pop star global.
A "Sacerdotisa do Soul" deixou centenas de músicas e mais de 60 discos gravados, a maioria com canções de outros compositores, mas várias de sua autoria. Algumas músicas eternizadas por sua voz de contralto inigualável: Mississippi Goddam, I Shall Be Released, Dont Let Me Be Misunderstood, Love Me or Leave Me, I Put a Spell on You e I Loves You Porgy.
O filme: What Happened, Miss Simone? é um documentário dirigido por Liz Garbus que recupera entrevistas reveladoras suas e de seu marido, Andrew Stroud, além de ter depoimentos de sua filha, Lisa Simone Kelly, e de amigos e parceiros. Documentário, EUA, 101min. Disponível na Netflix.