A certa altura de Como o Diabo Gosta, mais recente romance do escritor e tradutor gaúcho Ernani Ssó, Camilo, o protagonista e em parte narrador, compartilha uma intenção que também serve como uma límpida chave de leitura para o volume: "Camilo gostaria de escrever um livro que fosse um pouco esse desatino, a vida sem ordem alfabética, sem a lógica que falsifica tudo, um livro como um mate de manhã...".
Como o Diabo Gosta, que marca o retorno de Ssó ao romance depois de O Emblema da Sombra, de 1998, é esse livro pretendido por Camilo: um mosaico de cenas e histórias recuperadas pela memória enquanto seu protagonista enfrenta uma manhã feia e fria de meados de junho tomando mate e puxando o fio das recordações.
Camilo, o protagonista, é um aspirante a escritor que, no entanto, escreve principalmente cartas e ganha a vida fazendo traduções. Ao longo do livro, estruturado em capítulos curtos que flagram episódios da vida de Camilo enfileirados do modo menos linear possível, o leitor o verá testemunhar muitas das experiências do "desbunde" dos anos 1970 e 80, que são também as de parte da geração do autor: sexo, misticismo, a descoberta do litoral catarinense, ainda vazio de turistas, como modelo de uma "vida mais simples", relações tumultuadas e uma certa angústia voraz em tentar encontrar um sentido numa existência embretada e aleatória.
O desafio de buscar esse sentido parece não ser apenas de Camilo e da galeria de personagens, amigos, namoradas e conhecidos, figuras ora cativantes, ora excêntricas, que cruzam o caminho do protagonista em Porto Alegre ou à beira da praia no Farol de Santa Marta. O desafio do sentido é também lançado ao leitor: colocar uma ordem nas lembranças que vêm por associação muito livre - algumas vezes como esquete de vaudeville, outras como um tableau lírico e erótico, outras ainda como um delírio nonsense -, recordações que cobrem do despertar da sexualidade até o momento em que, aos 28 anos, Camilo, mirando o passado e até mesmo antevendo parte de seu futuro, deverá se lançar no espaço e se tornar o escritor que gostaria de ser.
O que sustenta a narrativa é um senso de humor sofisticado, pleno de referências usadas sem pedantismo. O humor que fará o leitor por vezes gargalhar, mas que não protege Camilo de ser um personagem problemático, com seu olhar distante e superior à vida que encontra pelo caminho.
Confira lançamentos que estão chegando às livrarias
COMO O DIABO GOSTA
De Ernani Ssó
Romance, Cosac Naify, 288 páginas, R$ 34,90.