Estratosférica soa leve e alegre, mais desencanado do que o denso Recanto (2011), seu trabalho anterior. A Gal está numa fase, digamos, jovial?
É isso mesmo. Estratosférica é o espelho da minha fase. Foi isso o que pedi a Kassin e Moreno (produtores musicais), um disco que fosse uma consequência do Recanto, que veio para romper.
Ao longo de sua discografia, há quebras, viradas e reinvenções marcantes. Estratosférica é, então, um novo rompimento no momento em que você comemora 50 anos de carreira e na véspera de completar 70?
Totalmente. Em muitos momentos de minha carreira, aconteceram rompimentos, alguns radicais. Essa Gal quase aos 70 e aos 50 de carreira é a Gal que, em vários momentos, pulou a cerca, no sentido de ir para lados inesperados.
A primeira quebra foi tropicalista?
No começo, eu era uma cantora muito influenciada pela bossa nova e por João Gilberto. Mudei radicalmente para a Gal tropicalista, que canta Divino Maravilhoso (do disco de estreia solo, em 1969). Depois veio uma história toda durante a ditadura e o exílio dos meninos (Gil e Caetano), aquela Gal experimental, transgressora. Aí, após a volta deles, o Caetano produziu o Cantar (álbum de 1974), que foi radicalmente o oposto do que eu vinha fazendo. É um disco belíssimo, que na época foi muito mal falado, mas que fez uma ruptura radical. Ali, tive que recomeçar minha carreira, com um novo público, tudo diferente. E daí veio o Gal Tropical (disco de 1979), que foi outra mudança radical, porque eu tinha um jeito hippie de me vestir, cantava descalça, e aí comecei a cantar de salto alto. Foi um grande sucesso, mas um desafio. Os anos 1980 e 1990 também trouxeram quebras, mas menos radicais, até que veio Recanto, que foi uma ruptura muito bem-vinda. Estratosférica não poderia ser diferente, porque eu queria um disco jovial e que se descolasse de Recanto.
Essa jovialidade de Estratosférica é reforçada pelo time de compositores e músicos.
É um disco com um olhar voltado para os jovens. Tudo aconteceu de maneira informal, em uma conversa em que eu e Marcus Preto (jornalista e produtor) decidimos trabalhar juntos. Ele ficou encarregado de pedir músicas, foi atrás do pessoal e bolou as parcerias.
Seu primeiro álbum, Domingo (1967), é assinado junto com Caetano. Desde então, ele é onipresente em sua discografia, inclusive em Estratosférica. Caetano é quem melhor escreve músicas para Gal?
Ele fez para mim músicas inacreditáveis, dizendo o que eu queria dizer, afirmando o que eu queria afirmar, com canções incrivelmente lindas, como Vaca Profana e Minha Voz, Minha Vida. Caetano é o meu compositor, eu diria. Com Sem Medo Nem Esperança (música que abre Estratosférica), o (Antonio) Cicero conseguiu fazer uma coisa que Caetano é mestre em fazer pra mim: uma letra que diz o que eu quero dizer e representa o meu momento. Ele entendeu algo e fez um negócio muito forte.
Falando em compositores, você está na reta final do show Ela Disse-me Assim, em que canta músicas de Lupicínio Rodrigues. Como tem sido esse projeto?
Estreei esse show em Porto Alegre (em março) pelo projeto da Natura. Cantar Lupicínio tem sido maravilhoso. Tenho uma história com ele, o gravei pela primeira vez na década de 1970 (Volta, no álbum Índia, de 1973). Ele é autor de músicas lindas, um grande compositor. A ideia do show foi levar uma linguagem musical contemporânea para as canções dele. Não teve direção musical, as ideias vinham de todos os lados, da minha parte e da parte dos músicos. A gente queria soar atual, e acho que ficou legal.
Nos anos 1970, você passou por Porto Alegre com shows solos e com os Doces Bárbaros (grupo formado por Caetano, Bethânia, Gal e Gil). Em um deles, dividiu noite com Os Almôndegas, de Kleiton e Kledir. Você conhece algo da música gaúcha?
Minha maior referência é Lupicínio, que ultrapassa a barreira regional. Ele é um compositor do Brasil, não só de Porto Alegre. Mas, além do Kleiton e Kledir, não conheço muito. E estou por fora da nova juventude. Peça a eles para mandarem músicas para Gal.
Como a musa do tropicalismo vê o legado do movimento?
O tropicalismo foi um momento importantíssimo e permanece, no sentido de que os jovens se referenciam muito. Assim como a bossa nova, o tropicalismo mudou bastante a cara da música brasileira. Na maneira de compor, na introdução de guitarras e na parte comportamental, o tropicalismo foi fundamental, e há ecos disso nas gerações mais novas. Quem começou tudo foi Caetano, e Gil acompanhou. Mas Caetano era a cabeça do movimento. Me engajei no espírito tropicalista, que trouxe um dos rompimentos de que falávamos. Mas só depois da bossa nova.
Fale mais da bossa nova.
Quando era menina e ouvi João Gilberto pela primeira vez no rádio, foi uma estranheza e, ao mesmo tempo, uma atração apaixonante. Imagina, eu tinha como referência Dalva de Oliveira, Ângela Maria, Orlando Silva, Jackson do Pandeiro... João Gilberto era o novo do novo, a estranheza total. Todo mundo falava: "Que cara maluco". E era de uma beleza impactante. Reaprendi a cantar ouvindo João Gilberto, foi a primeira quebra da minha vida.
Gal, conte o que eram as "dunas da Gal" , que ficaram também conhecidas como "dunas do barato" e viraram point no Rio nos anos 1970?
Era um lugar em Ipanema onde ninguém ia porque tinha uma obra, muito barulho, e por isso estava sempre vazio. Eu e Jards Macalé andávamos muito juntos naquela época. Um dia, passamos naquela praia e resolvemos ficar justamente porque era vazia. A gente começou a ir para lá e, em pouco tempo, aquilo virou um reduto de gente como a gente e passou a ser muito frequentado. Virou um point mesmo, tinha até turista que ia ver os hippies.
Você, Caetano, Gil e Bethânia estão todos na casa dos 70 anos e superativos, reinventando-se, lançando discos inspirados, caindo na estrada. Como é a relação de vocês hoje?
O convívio não é o mesmo de antigamente, quando a gente quase morava junto. Mas a conexão continua. Fiz o Recanto com o Caetano, ele escreve músicas para mim. Só que eles todos moram no Rio, e eu em São Paulo. E não é porque você não fala todo dia com um amigo seu que você deixa de gostar dele ou de ter uma afinidade, um relacionamento. Se você fala com um amigo todo o dia, enche o saco, né?
Você tem opinião sobre legalização e descriminalização das drogas?
Isso é um tema muito complicado. É preciso muita discussão. Prefiro não me manifestar de maneira leviana. Mas penso que tudo que é proibido acaba sendo mais tentador.
E como você vê o Brasil hoje?
Com muita preocupação. Acho que é um momento muito triste ver tudo o que está sendo investigado na Petrobrás, por exemplo. Isso faz muito mal à imagem do Brasil e é um processo horrível porque todo esse dinheiro podia estar aí ajudando o país a melhorar saúde, educação, cultura, o sistema prisional, que é uma porcaria... É desestimulante, não que eu me desestimule. Acredito no Brasil, acho que vai ser cada vez melhor. O povo está acordando, as pessoas estão começando a prestar atenção. Pagamos imposto para ver um país melhor, justo, menos desigual. Essa cultura do toma lá da cá vem de muito tempo, é um negócio que tem que ser banido. Precisamos de políticos íntegros, honestos, altruístas, que tenham nobreza de alma e caráter, que se dediquem ao povo como um pai que dá o melhor dele ao filho. Vejo isso como uma artista e sonhadora, todo artista é sonhadora.