Cogitei ampliar hoje minha crítica ao pop-brega-sertanejo registrada por Paulo Germano em ótimo texto para o caderno PrOA de 29 de março. Mas, em um canto de minha mesa, dois discos e um livro de Arthur Dutra me olhavam como dizendo: "Vai nos deixar aqui?".
Eles estavam certos. Ia eu gastar um espaço precioso para chover no molhado da mediocridade, enquanto três obras do tipo raro permaneceriam na fila à espera de apreciação. Azar que as duplas de Goiás e São Paulo vendam milhares de CDs e toquem à exaustão nas rádios populares. Valorizo muito mais as parcas mil cópias dos trabalhos de Arthur, que testam meu prazer de ouvir música e desafiam minha inteligência. Estou me referindo aos discos A Musa de Benjamin & Outros Ensaios e O Tempo do Encontro e ao livro Arte D'Encarte, lançados simultaneamente.
O carioca Arthur Dutra tornou-se conhecido por fazer shows e/ou gravar com Lenine, Moska, Erasmo Carlos, Roberta Sá, Guinga e tal, tocando vibrafone e bateria. Poucos sabem de seu lado acadêmico e seu gosto pelo conhecimento. Ele estudou percussão sinfônica e formou-se em Ciências Sociais no Rio, fez graduação em Música em Nova York (2002 a 2006), aperfeiçoou-se em composição em Paris (com bolsa, em 2012) e atualmente é mestrando em Filosofia na UFRJ.
Com esse currículo, imaginava fazer uma carreira de professor universitário. Mas os amigos começaram a fisgá-lo para a música na vida real, os palcos e as gravações - que na verdade é o que ele também queria. Veio um primeiro CD, Projeto Timbatu, em 2010, e a ousada trilogia de agora, que o situa na vanguarda da música popular brasileira.
Para começar, Arthur tira o vibrafone da tradicional posição de mero acompanhante, colocando-o no centro do que lhe interessa. No álbum A Musa de Benjamin, os arranjos têm vibrafone, sopros, baixo e bateria. No outro, além disso, aparecem violão, guitarra e trio de cordas. Entre os músicos, estão os conhecidos Zé Nogueira, Andrea Ernest Dias, Jessé Sadoc, Bernardo Bosísio e Tutty Moreno.
A composição é complexa e singular, Arthur criou um estilo próprio na confluência de música erudita, MPB e jazz. Os arranjos tem urdidura minuciosa, revelando detalhes a cada audição. Há humor, há colorido, há prazer como se fosse um jogo. As conexões com a literatura e a filosofia são explícitas desde os títulos de algumas músicas, em especial no primeiro disco, e fortemente no livro.
O Benjamin do título é o Walter. A faixa que abre o CD chama-se Kant no Samba-jazz. Depois vêm O Encontro de João Cabral com Ravi Shankar, O "Correio" de Drummond a Noel, As Bandeirinhas de Volpi, Choro de Schopenhauer. São cinco instrumentais e cinco cantadas na voz "pequena" do compositor. Só uma não é dele, O Bêbado e a Equilibrista (João Bosco/Aldir Blanc, em versão instrumental).
Arthur também é um poeta/letrista de primeira, evidenciando-se ainda mais no disco O Tempo do Encontro, todo de canções e com as vozes de Moska, Zé Renato e Sílvia Manchete. Uma das faixas é o poema Mosaico, de Drummond, cantado em forma de colagem, com insólito efeito. E o livro é um "encarte expandido" dos discos, uma proposta não acadêmica de tratar a filosofia a partir da história de Benedix, um roadie de ficção. Acho que os fãs dos sertanejos não apreciariam isso...
A MUSA DE BENJAMIN & OUTROS ENSAIOS - CD independente, R$ 25. Contato: arthurdutra.com.br.
O TEMPO DO ENCONTRO - CD independente, R$ 25. Contato: arthurdutra.com.br.
ARTE D'ENCARTE - Editora Oficina Raquel, 138 páginas, R$ 32.
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FÉRIAS EM VIDEOTAPE (Simone Mazzer) - Rodrigo Faour não deixa por menos: "Simone Mazzer é a voz mais marcante surgida na MPB desde a morte de Cássia Eller". De fato, a cantora (e atriz) paranaense é poderosa e faz do disco de estreia um acontecimento. Em outros tempos, várias faixas fariam sucesso no rádio, a começar pela corrosiva Tango do Mal (de Luciano Salvador Bahia). A clássica marchinha Camisa Listada (Assis Valente) foi transformada em um blues não menos ácido. E assim vai, passando por Parece que Bebi (Itamar Assumpção), Você Não Sacou (Celso Fonseca/Ronaldo Bastos), Hyper-Ballad (Björk), Back to Black (Amy Winehouse), Babalu (Margarita Lecuona). A voz de Simone remete a uma mescla de Gal Costa e Ângela RôRô. É acompanhada por um trio muito eficiente (Marco Antônio Scolari, André Bedurê e Eduardo Rorato), além de convidados como Elza Soares, Sacha Amback e Ricco Viana. Pimba/Tratore, R$ 30
TELE VISÃO (Tupi & The Nickins) - A música do cantor, compositor e guitarrista paulista Jorge Sampaio, ou Tupiniquin, ou Tupi, é múltipla, a partir de uma base de rock progressivo e psicodelia, com pinceladas de MPB. E chega à melhor síntese neste terceiro álbum. Massas sonoras por sintetizadores, teclados analógicos, guitarras, baixo e bateria criam o clima para a peculiar voz grave de Tupi falar de índios e liberdades. Às vezes, lembram o ambiente onírico e viajante de Pink Floyd e Moody Blues. Mas, passadas tais sensações, não restam dúvidas de que Tupi é mais ele. Também há canções simples e momentos que soam como mantras, como em Incríveis Índios Mortos Brasileiros, em que a letra enumera 30 etnias e conclui que "todo ser humano é indígena". O power trio se completa com Samuel Fraga e Dustan Gallas (do Cidadão Instigado). Lanny Gordin e o gaúcho Astronauta Pinguim estão entre os convidados. Independente/Tratore, R$ 30
O TERNO - Este disco da banda paulista saiu no final de 2014, mas, como só agora chegou aos meus ouvidos, acho justo compartilhá-lo com os leitores que não sabem dele. É música para quem gosta de gaúchos como Apanhador Só e Ian Ramil. Anda nesse rumo de atualidade, embora exerça com mais vigor uma pressão de rock, ritmo pesado e guitarras distorcidas - mas também tem baladas, blues e tal. Ao lado do baixista Guilherme d'Almeida e do baterista Victor Chaves, o cantor e guitarrista Tim Bernardes é o autor de todas as músicas, com melodias fortes, bem-humoradas e atentas à realidade do país. Filho do bamba Maurício Pereira, Tim canta tão bem quanto compõe e merece todos os prêmios e elogios que vem recebendo desde o primeiro CD, em 2012. Não por outro motivo, foi uma das atrações do recente festival Lollapalooza. Entre os convidados estão Tom Zé e Marcelo Jeneci. Independente/Tratore, R$ 30