Na entrevista a seguir, André Midani, 82 anos, avalia a trajetória da MPB, analisa a crise do mercado musical diante da pirataria e da era digital e comenta o momento atual da música - e da política - brasileira.
A série André Midani - Do Vinil ao Download (que estreia hoje no GNT) é conduzida por diversos encontros gravados em sua casa, em Copacabana, reunindo artistas com quem você trabalhou desde os anos 1950. Como foi reviver essa história?
A série tem algumas virtudes. A primeira, óbvia, é que a gente pode ver o quanto tínhamos de música boa no Brasil naquela época, em específico no período de minha atuação no mercado. A segunda é a capacidade desses artistas de interagirem entre eles de maneira muito criativa. A terceira é vermos que realmente existe a possibilidade de um homem de negócios, qualquer que seja, ter um contato positivo, criativamente falando, com seus artistas. Ou seja, um relacionamento amoroso e eficaz, apesar de brigas e dificuldades.
Trajetória de André Midani é tema de série e livro
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Como foi o encontro com a turma da bossa nova?
A gente só percebeu que havia um movimento depois que aconteceu. Um dia, o fotógrafo Chico Pereira me disse que eu deveria conhecer uns amigos dos filhos dele que estavam fazendo uma música diferente. Ele organizou a reunião e, quando cheguei na porta, vi reunidos Roberto Menescal, Carlinhos Lyra, Nara Leão e companhia. Com minha referência cultural francesa, achei que o que esses meninos estavam fazendo era parecido, não igual, com o que se fazia na França para a juventude. No Brasil, não havia música brasileira para a juventude. Ao mesmo tempo, Aloysio de Oliveira, diretor artístico da Odeon, me convidou para ir na casa dele porque queria me mostrar algo. Era nada menos do que João Gilberto.
Nos anos 1960 e 1970, a MPB tinha prestígio da crítica e fazia sucesso popular. O que levou a indústria musical à virada dos anos 1980, quando passou a apostar no rock nacional?
Para uma pessoa desavisada ou muito jovem, que não viveu aquela época, esse negócio de rock parece que aconteceu de um dia para o outro. Mas não foi assim. Antes, houve Mutantes, Novos Baianos, Raul Seixas. Caetano e Gil também tinham uma postura de roqueiros, no sentido de que usaram a guitarra elétrica como contestação, como uma postura anárquica inclusive, de quem fugia aos partidos políticos convencionais. Ainda naquela época, quando me perguntaram como eu via o futuro da música brasileira, dizia que era o rock. Então, já havia esse espírito contestador em muita gente. A ruptura dos anos 1970 para 80 foi uma evolução, feita por uns meninos que romperam com a raiz da música brasileira.
E o estouro comercial do axé nos anos 1990?
No axé, não vi nada de muito estranho, a gente já havia recebido da Bahia Caymmi, João Gilberto, Gil, Caetano, Gal e Bethânia. O axé chegou como mais uma contribuição. Os baianos, por natureza, são muito convictos e atraentes pela liberdade de comportamento. E o axé era a nova expressão dessa liberdade musical.
Como o senhor viu a massificação do pagode?
O pagode é uma expressão, vamos dizer, genuína das comunidades, e que surgiu com o mérito de expressar o que essas comunidades viviam, pensavam, desejavam. É assim até hoje, representando uma parcela do povo brasileiro. O sertanejo atual tem algo de parecido com isso. Sempre existiu, especialmente no interior de São Paulo e Mato Grosso do Sul, mas de maneira um pouco mais folclórica. Com o desenvolvimento econômico absurdo que a soja deu a essas regiões, veio também o progresso e a comercialização da cultura local.
Onde entra o funk nisso tudo?
Tudo isso não é tão simples, mas vou tentar elaborar um resumo. O funk é outra expressão de comunidade. Vamos pensar que temos basicamente três vertentes. Uma é a tradicional do samba, liderada por Martinho da Vila e Paulinho da Viola. Depois, o pagode, que é menos complexo do que o samba, digamos, e traz uma cultura de alegria, de cerveja. E eu falo isso como quem adora cerveja (risos). E temos finalmente os rebeldes, que são os jovens negros que não estão de acordo com o que está acontecendo por aí. E que encontram no funk não só música e ritmo, mas o linguajar para se expressar.
Faz sentido pensar que houve uma perda de qualidade da música popular?
Bobagem. A ideia de perda de qualidade representa o pior da elite brasileira - que, aliás, não significa mais nada neste grande país. Qualidade é algo subjetivo. Música existe para quê? Para trazer felicidade às pessoas, seja no seu amor ou no seu desamor. Então, a qualidade é irrelevante porque, sim, a dita falta de qualidade dá prazer, sono, força, tudo que é bom para determinada pessoa. Quem sou eu para dizer que não tem qualidade?
O senhor conhece algo da música do Rio Grande do Sul?
Conheço e vou dizer algumas coisas. O músico baiano pega o avião e se instala no Rio ou em São Paulo. O mineiro, ainda que tímido, faz o mesmo. O gaúcho fica em Bagé, Porto Alegre, onde for. Não vai para outros lugares. A música do Rio Grande do Sul é vigorosa, brasileira, importante, mas se furta a entrar no clube dos grandes. Com isso, se torna uma música regional. Nunca entendi o porquê, pois os músicos gaúchos são muito talentosos. Quando conheci Bebeto Alves, vi nele um artista maravilhoso. Os gaúchos deveriam sair, se encontrar com músicos de outros lugares, trabalhar junto. O modelo autossuficiente, dos artistas que ficam no sul e vivem do circuito local, é pequeno para o tamanho do seu talento.
Uma pergunta saia-justa: você pagou jabá para ter seus artistas em destaque em rádios e TVs?
Seu safado (risos). Claro que sim. Se me perguntar se o jabá ainda é praticado, não sei, mas vou dizer o seguinte: existem duas profissões na vida que são eternas; uma é a putaria; outra, a corrupção.
Na condição de quem testemunha os rumos do país desde 1955, como avalia o Brasil hoje?
O Brasil vinha muito bem. Mas, de alguns anos para cá, a demagogia, o populismo, a mentira, a corrupção e a sem-vergonhice, que achávamos fazer parte de capítulos do passado da história, tomaram conta do país. Sempre me lembro do Ultraje a Rigor nos dizendo que éramos inúteis (na música Inútil, de 1983). Até hoje somos inúteis como diz a letra. Então, acho que nos resta ir à igreja e rezar (risos). Com a chegada do Lula e a ascensão da classe C, tivemos coisas positivas. Mas perdemos algo nos últimos anos. O PT e a Dilma fizeram um erro ao buscar a reeleição. Teria sido melhor para eles deixar o Aécio Neves tentando consertar o país para eles poderem se reorganizar internamente e poderem fazer um retorno triunfante daqui a quatro anos.
Entrevista
"Qualidade é algo subjetivo", diz executivo da indústria fonográfica André Midani
Série na TV e livro contam trajetória do homem que projetou grandes nomes da MPB
Francisco Dalcol
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