Prático aquela modalidade de absorção insana de informação, via redes sociais, nos dias que sucedem os grandes eventos.Estou falando das manifestações verde-amarelas, das vuvuzelas, dos xingamentos e das selfies com a tropa de choque.
Fiquei em casa.Teria muito o que dizer e do que reclamar.Também estou insatisfeita com a condução do governo e escandalizada com a corrupção (de políticos e empresários). E no entanto, não conseguiria estar ali sob as árvores do Parcão, ouvindo um conjunto de ideias com o qual já sou bastante familiarizada graças ao Facebook e às caixas de comentários dos portais. Teria a sensação de que fui parar na festa errada. Ou, no mínimo, de que precisaria encontrar, e rápido, aquele pequeno grupo que discretamente ocupou o canto do salão.
Se há alguma pluralidade de opiniões e objetivos naqueles que vestiram as cores da pátria, certas marcas de discurso me parecem constantes. Isso fica visível quando você começa a discutir com ex-colegas de colégio ou bisbilhotar perfis de conhecidos. Alguns exemplos:
1) Todos caminharam por um ideal comum, não individualista! É burrice você achar que pode ser rico sem cuidar do bolso do pobre, que vai comprar no seu supermercado, abastecer no seu posto de gasolina ou poder pagar por uma consulta que você vai prestar! Nada contra elite protestar. Nada contra a elite. Também sou elite. Mas o discurso classista é vergonhoso. O pobre deve ser "bem cuidado" e ter seu poder de compra assegurado, porque vai comprar das nossas empresas ou consultar no nosso consultório? Ah, entendi. Sinceramente, prefiro um estudante com um milhão de sonhos impossíveis, caminhando ao meu lado do que essa senhora aí de cima.
2) Pago meus impostos, tenho direito de protestar. Correto. Todos pagam (fora os que sonegam). Mas há algo de antipático na frase. Desconfio que o que me incomoda seja a necessidade de mencionar o dinheiro, enxergando o ato de pagar impostos como uma relação comercial ordinária. Antônio Prata poderia dizer que "pago meus impostos, tenho direito de protestar" é de direita, enquanto "sou cidadão, tenho direito de protestar" é de esquerda. A diferença é sutil, mas reveladora. Além disso, o subentendido aqui pode ser "estou pagando mais do que outros, portanto mereço mais."
3) Agora tenho que trabalhar pra pagar o bolsa família de alguém que está deitado numa rede no Nordeste. Então algumas pessoas não estavam tão preocupadas com a corrupção, quanto estavam com as políticas assistencialistas do PT. Além do preconceito escancarado, aqui há uma clara noção de que os impostos que eu pago devem ser revertidos tão somente em benefícios para mim mesmo. Enquanto o sujeito estava preocupado em enxergar um paralelo entre Brasil e Venezuela ou Cuba, esqueceu de perceber que todas as nações da Europa Ocidental, e até mesmo o liberal Estados Unidos, possuem políticas dessa natureza.
4) Eu acredito na meritocracia. Variação sobre o mesmo tema. O que está implícito é "sou elite porque dei duro para chegar onde estou". E a mulher que pega duas horas de condução para Alvorada não deu, não está dando duro? Negar que somos privilegiados é colocar na "preguiça", na "falta de perseverança", a razão do insucesso do outro, o que me parece extremamente perigoso.
Aguardemos o próximo capítulo da festa da democracia. E cuidem-se todos com os ex-colegas.