O Rio Grande do Sul teve grandes poetas gauchescos. Só para lembrar cinco de reconhecimento definitivo: Aureliano de Figueiredo Pinto, João da Cunha Vargas, Jayme Caetano Braun, Apparício Silva Rillo e Luiz Menezes. Vivíssimo e ativíssimo aos 57 anos, o itaquiense João Sampaio integra essa estirpe. Com uma poderosa obra registrada em livros e discos a partir de 1980 (quando saíram o primeiro livro, Canto ao Cavalo Crioulo, e as primeiras músicas da parceria com Noel Guarany no LP Alma Garra e Melodia), ele é o mais prolífico poeta e letrista do universo nativista. São cerca de mil letras em discos de variados parceiros e intérpretes e 20 livros em português, espanhol e guarani, lançados aqui e na Argentina. No caso raro de João Sampaio, a quantidade é lindeira da qualidade. Faz versos como quem respira.
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Resolvi escrever sobre ele porque, apesar de tudo, ainda é pouco conhecido fora do meio e porque está lançando mais um CD autoral (acho que o 12º), Milongas de Pampa y Cielo, uma parceria com o compositor e cantador Nilton Ferreira habitada por vários sentimentos milongueiros. São de João as letras de sucessos como Entrando no Bororé, Baile das Negra Touro, Criado em Galpão, Tristeza Chamamecera, Na Beira do Aguapey, Gaúcho Doble-Chapa, Chamarrita de Galpão, Pedro Pampa, musicadas por Noel Guarany, Luiz Carlos Borges, Elton Saldanha, Gaúcho da Fronteira, Walther Morais. Entre os parceiros, também estão Luiz Marenco, Pedro Ortaça, Airton Pimentel, Jorge Guedes. Sua pequena propriedade rural em Itaqui (herança do avô), onde cria cavalos crioulos, ovelhas e búfalos, vive cheia de música o tempo todo.
João Sampaio é um ideólogo aguerrido das essências culturais missioneira e campeira. Mas, ao entrar em contato com seu pensamento, o desavisado ouvinte e/ou leitor se surpreenderá ao ver um poeta universal e de esquerda - no livro e CD Para Alguns Iluminados, por exemplo, cita em seus versos Da Vinci, Bolívar, Lincoln, Zapata, Chaplin, Guevara, Yupanqui, Violeta Parra, Prestes, Villa-Lobos, Allende, Luther King, Tom Jobim. Mais ainda, ao saber que esse homem, cuja escolaridade parou no Ensino Fundamental, é um leitor que vai bem além do cânone rio-grandense (Simões, Erico, Cyro, Quintana...). Discorre sobre Machado, Guimarães Rosa, Borges, Cortázar, Vinicius, Neruda, Walt Whitman, Emily Dickinson, Brecht e tal. Sem contar o conhecimento da história guaranítica, ao ponto de dominar o ancestral idioma.
Fluente também no espanhol, é um pioneiro na senda da integração cultural latino-americana, envolvido desde sempre com esse horizonte. Seu "galpão" está diariamente conectado com o mundo pela internet. Apesar de tudo o que arrolei acima, eu o conheci de fato e passei a admirá-lo a partir do contato no Facebook. Com este registro, presto uma homenagem a ele. Outro dia perguntei por que não saiu de Itaqui. Trecho da resposta: "Apesar de ter andado por nossa América criolla e de ter descoberto com os índios que 'el hombre es tierra que anda', preciso diariamente me perfumar do crioulismo que carrego como testemunho artístico do tempo em que vivo e do chão em que piso. Preciso estar em contato com a matéria-prima, os motivos folclóricos, históricos, antropológicos e sociológicos que me alimentam".
SERVIÇO
Milongas de Pampa y Cielo
De Nilton Ferreira/João Sampaio
Música nativista, Acit Discos, R$ 11,90.
BORGES AO VIVO
A melhor definição de Luiz Carlos Borges é dada por ele mesmo: "Quando me dei por conta de que andava, ouvia, falava e me alimentava, já sabia que era músico". E desde os sete anos, quando já tocava acordeão como gente grande, veio construindo uma carreira que o destaca entre os grandes nomes da música regional brasileira e do folclore sul-americano. É chover no molhado falar de sua excelência como acordeonista, violonista, compositor, cantor, arranjador, líder. Ele está léguas à frente do padrão regionalista gaúcho. No álbum (DVD e CD) Luiz Carlos Borges ao Vivo - 50 Anos de Música, os convidados invariavelmente o chamam de "mestre". O internacional Renato Borghetti, que convive com ele desde guri, reconhece: "O que eu aprendi com esse homem é algo impressionante".
Outro convidado, Humberto Gessinger, antes de fazer o dueto em Encontro com a Milonga, diz "obrigado, maestro". Borges já tocou em disco dos Engenheiros do Hawaii (entre outros do rock), fez um CD jazzístico de piano e acordeão com Geraldo Flach, gravou baião com Dominguinhos etc. Seu currículo é amplo, geral e irrestrito. Sem preconceitos, sem xenofobia tradicionalista, aberto como deve ser um músico. Não fosse assim, Mercedes Sosa não o teria convidado para tocar em seu grupo em turnês internacionais, não o gravaria. Dialogando com outros gêneros e estilos, Borges não perdeu sua essência; ao contrário, a aprimorou, lapidou. As 17 faixas do DVD resumem os 50 anos de trabalho do "véio", como o chama Shana Müller.
Shana, hoje uma estrela do Sul, está entre os convidados do show gravado ao vivo no Theatro São Pedro com direção de Rene Goya. Também estão Mauro Ferreira, Luciano Maia, Samuca do Acordeon, Pirisca Grecco, Arthur Bonilla, César Oliveira e Rogério Melo, o argentino Juan Fallu e outro discípulo, Yamandu Costa, ao lado da mulher, a violonista francesa Elodie Bouny. Nos extras, com gravações em Passo Fundo, aparecem Alegre Corrêa, Oswaldir e Carlos Magrão e o carioca Diogo Gameiro, baterista de Nando Reis e genro de Borges, mandando ver num vanerão. O repertório? Uma síntese dos 50 anos. Tem Coração de Gaiteiro, Vidro dos Olhos, Florêncio Guerra, Redomona, Baile de Fronteira, Na Beira do Aguapey - a propósito, o próximo disco de Borges será inteiro com a parceria de João Sampaio.
SERVIÇO
50 Anos de Música
De Luiz Carlos Borges
Música nativista, Acit Discos, R$ 34,90