Nelson Motta festejou seus 70 anos no dia 29 de outubro. Jornalista, produtor musical e compositor, ele mantém aceso o espírito rocknroll: seguir rolando para não criar limo. Agora, comemora o aniversário com um novo livro, As Sete Vidas de Nelson Motta, em que comenta crônicas suas publicadas desde os anos 1960. Está com disco novo na praça, Nelson 70, releituras de sucessos que ajudou a compor por um timaço de artistas. Também estreou no Canal Brasil (quartas-feiras, 20h30min) uma série com os bastidores da gravação do álbum. E tem mais novidades a caminho, avisa Nelson.
De que forma o passar dos anos mudou sua perspectiva da velhice? Quando jovem, você se imaginava aos 70 anos fazendo o que faz hoje?
A primeira coisa que vem à cabeça é o privilégio de estar vivo aos 70 anos, bem de saúde, de cabeça e produzindo. Já é maravilhoso em si. A coisa biológica, fisiológica, foi guiando meu trabalho. Vivi na noite e da noite durante 20 anos, dos meus 20 aos 40 anos. Fui dono de boate e discotecas, frequentava a noite todos os dias. Mas a minha atividade foi mudando. Virei escritor profissional com 50 anos. E a vida do escritor é o oposto. Passei a ser uma pessoa do dia, mudei meu estilo de vida e escrevi 10 livros. Não tenho saudade de nada. Vivi intensamente esses anos todos, mas não tenho saudade do passado. Tenho horror de nostalgia. A coisa que mais envelhece é nostalgia. Adoro trabalhar e só faço o que quero. Conquistei isso. É um grande prêmio. E faço em ótimas condições, na minha casa confortável, viajando por um lugar bacana. Trabalhei com um monte de gente e gosto agora de trabalhar sozinho. Foi uma trajetória natural.
Você já tinha lançado em 2000 uma autobiografia, Noites Tropicais, e agora apresenta, entre novos projetos, outro livro de memórias, As Sete Vidas de Nelson Motta. O que o motivou a voltar ao seu passado?
A Isa Pessoa, editora de 10 livros meus, teve a ideia de investir nesse formato híbrido, misturar meus 50 anos de jornalismo com biografia. É o meu ponto de vista de hoje sobre coisas que escrevi no calor do momento. É um material que não via há 50 anos. Minha mãe tinha uma pasta com recortes de minhas colunas, todas elas, desde a primeira. Coisa de mãe. Montamos um roteiro com os personagens e as histórias, e fui escrevendo textos para costurar essas crônicas. Tem cartas do Caetano Veloso, do Vinicius de Moraes (leia abaixo), do Hélio Oiticica e também crônicas de Nova York, do tempo em que morei lá. Além de jornalista, sou compositor, letrista e produtor de discos. Minha relação com esses personagens sempre foi muito pessoal.
A carta de Vinicius:
Paris, 24 de janeiro de 1969.
Nelsinho, meu querido, estamos com uma saudade gordíssima, obesa. Como é, tudo barra limpa? Quem está aqui no hotel é o nosso Chico com sua Marieta. (...) Elis havia dito que chegaria ontem, mas até agora não deu sinal. (...) o nosso Tom ligou para mim de Los Angeles e batemos um longo papo. Ele vai para a Colômbia (...) fazer a música de um filme e só no fim de fevereiro vai gravar o disco com "God" Sinatra. O Chico e a Marieta vão ficar morando em Roma (...) O negócio da representação do Orfeu da Conceição na Broadway está superquente (...) Se tudo sair certo e a peça porventura pegar, pode estar certo que o seu "titio" aqui dará uma mesada gorda para você e nossos amigos. (...). Um grande abraço a todos os nossos amigos, especialmente Ronaldo (Bôscoli), Mièle e Rubem (Braga) (...) E se vir minha filharada por aí, peça que me escreva. Vinicius.
Nelson Motta acompanhou Tim Maia desde o primeiro disco e fez dele personagem de livro, musical e filme
Sua trajetória desde os anos 1960 é como a de um Forrest Gump da cultura brasileira, presente em momentos marcantes ao lado de personalidades de diferentes áreas, da música ao cinema, do jornalismo à televisão. Você já se imaginou como personagem de um filme?
Tive muita sorte, fui muito ajudado, o que não significa que não tenha trabalhado como um mouro, feito um enorme esforço. Até já me falaram que eu renderia um musical, com músicas minhas e de pessoas que passaram pela minha vida. Mas nessa trajetória falta drama, falta polêmica. E, sem isso, a história perde muito. O personagem até pode ser divertido, mas a dramaturgia é fraca. Creio que minha vida daria um show, com alguém dizendo um texto costurado por músicas, tipo um stand-up. Também poderia render um enredo de escola de samba. Adoraria. Ainda em vida, especialmente.
Uma vida sem dramas?
Eu me refiro ao personagem. Sofri muito, tive perdas, vivi fracassos profissionais, amorosos, econômicos. Mas não vou expor barracos, por exemplo, porque, apesar de ter uma vida pública, sou uma pessoa discreta. Muitas coisas das loucuras, da cocaína, contei no meu livro Noites Tropicais. Mas acho que isso é pouco do ponto de vista dramatúrgico.
Segue em discussão no Brasil a questão legal em torno das biografias, em que biografados ou seus familiares exercem poder de veto sobre trabalhos a seu respeito. Você aceitaria a publicação de uma biografia não autorizada sua?
Claro quem sim. Agora, se me sacanear e mentir, tá fu****. Entro com os quatro pés na porta (risos).
Você acompanhou de perto e de dentro os mais importantes momentos da música brasileira. Qual sua avaliação sobre o atual cenário musical do país, sobretudo o segmento voltado para o consumo de massa?
Nesses últimos anos, tenho dado cada vez menos atenção à música pop de massa. Porque estou envolvido com outras atividades, com musicais, minisséries de televisão... Quase nada ligado à música. Não tenho opinião. Tenho amigos que acompanho e também recebo muita coisa. Se você visse a pilha de discos que tenho em minha casa, apenas dos últimos três meses, não acreditaria. São centenas. Mas não ouço nada disso.
O que você anda ouvindo então?
Passo alguma coisa pro meu iPod quando vou caminhar de manhã na praia. É a forma de me atualizar. Das últimas coisas que ouvi, tem o disco novo do Jorge Drexler, Bailar em la Cueva, que é fenomenal. E gostei muito do disco do Moreno Veloso, Coisa Boa.
Como é seu trabalho de curador do Sonoridades, festival voltado a apresentar novos talentos (a edição 2014 começaria neste final de semana no Rio e segue até o dia 29 de novembro)?
Já é o quarto ano do Sonoridades. A atração pelo novo é uma constante na minha vida desde o início. Sou novidadeiro. Isso me estimula. Não tenho preconceito. Quando o (antropólogo) Hermano Vianna me disse: "Você tem de ouvir a Gaby Amarantos!" (que participou da edição 2012 do Sonoridades), adorei.
Depois do sucesso dos musicais sobre Tim Maia e Elis Regina, você prepara um musical sobre Wilson Simonal. Quando estreia?
Estreia em janeiro de 2015. O Simonal já ganhou um excelente livro, do Ricardo Alexandre (Nem Vem que Não Tem - A Vida e o Veneno de Wilson Simonal), e um ótimo documentário do Cláudio Manoel (Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei). Na verdade, essa volta do Simonal - porque odeio a palavra resgate, que é coisa de salva-vidas, de refém - começou no meu livro de 2000 Noites Tropicais. Até então, o Simonal era um morto vivo, um zumbi. Ele morreu três meses depois do lançamento do livro. Ali se teve a ideia de fazer o livro, o filme, os discos do Simonal foram relançados, e os filhos dele fizeram um show com vários intérpretes cantando músicas do pai. O musical é uma soma disso tudo. A maior qualidade de um musical é, lógico, ter grandes canções. É o forte do Tim Maia e da Elis também. Mas o Simonal, além de histórias e músicas sensacionais, tem uma carga dramática incrível, porque ele é um personagem que foi do céu ao inferno, tem uma densidade maior do que a do Tim e a da Elis. É uma história que começa alegre e termina dramática, tristíssima. Encontramos um ator fantástico para viver o Simonal: Ícaro Silva, de 25 anos, que fez o Jair Rodrigues no musical da Elis.
Bancada original do programa Manhattan Connection, criado em 1993: Paulo Francis, Nelson Motta, Lucas Mendes e Caio Blinder
O musical de Simonal pode virar filme também, como o de Tim Maia?
Acho mais interessante um desdobramento como minissérie de TV, mantendo o estilo de musical, com a mesma dramaturgia, 25 músicas. Acho que seria um sucesso. Tomara que alguém faça.
O que você está planejando para após o musical do Simonal?
Vou escrever outro musical, também com Patrícia Andrade, que fez o do Tim e o da Elis comigo. Esse vai se passar em São Paulo, em 1967. Acompanha um grupo de jovens e tem como clímax o encontro deles no Teatro Paramount, na noite da histórica final do Festival de Música da Record, aquele que virou filme (Uma Noite em 67). A noite será encenada tal e qual ocorreu, com atores vivendo os jovens Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Elis Regina, Roberto Carlos, Edu Lobo. A diferença é que quem vai escolher o vencedor é o público, pelo celular. Cada noite deverá ter um resultado diferente. Será interessante ver como as 12 músicas, entre elas Roda Vida, Domingo no Parque e Alegria, Alegria envelheceram, como diferentes plateias reagem a elas. Ao contrário do que se diz em todos os teatros, o apresentador desse musical vai dizer: "Por favor, liguem os seus celulares".
Como anda o projeto do filme da Elis Regina?
Eu e Patrícia Andrade fizemos um primeiro roteiro e entregamos. Mas não sei em que pé está. Não sei se levantaram financiamento, o que acho pouco provável a essas alturas. É o primeiro filme do cara (Hugo Prata).
Em 2014, celebram-se os centenários de Dorival Caymmi e Lupicínio Rodrigues. Eles fazem parte do seu universo musical?
Totalmente. Foi com João Gilberto que aprendi a amar o Caymmi. E depois a vida me fez parceiro do filho dele, o Dori Caymmi (a dupla venceu o Festival Internacional da Canção de 1966 com Saveiros, cantada por Nana Caymmi). Convivi com o Caymmi, olha que maravilha, e podia chamá-lo de "Algodão". Foi um privilégio. O grande lance é que, enquanto os maiores compositores da música brasileira - Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso - têm até 400 músicas, e o Noel Rosa fez 200 tendo morrido com 26 anos, o Caymmi tem 80 e viveu quase cem anos. Isso mostra o rigor dele. O Caymmi não tem música ruim. Os outros têm um monte de porcaria, contrapeso, pelanca. O Caymmi é só filé. Já o Lupicínio é um dos meus compositores favoritos, mas por motivos diferentes da maioria que gosta dele. O que mais me encanta nele é a música, a melodia, a harmonia. É de um refinamento, de uma sofisticação... Mas sem letra. Ele já seria genial sem as letras. São letras que tocam em temas difíceis, doloridos. Ele tem muita habilidade com as palavras, mas em cima de uma coisa que, pelo meu temperamento, não me atrai muito: o rancor, a vingança. Não tem nada a ver comigo. Admiro com certo distanciamento, não me envolvo.
Elis Regina permanece como a voz feminina insuperável da MPB?
Ela é a favorita de muita gente e da maioria das cantoras. Mas a Gal Gosta é uma cantora no mínimo no mesmo patamar da Elis. Cada uma no seu estilo. A Elis tem muito do mito de ter morrido jovem. A Gal Gosta vai fazer 70 anos, como a Maria Bethânia.
A minissérie da Globo O Canto da Sereia adaptou seu livro homônimo. O que achou do resultado?
Adorei. Foi de alta qualidade. Não me envolvi em nada na adaptação, dei apenas uma opinião sobre o elenco. Geralmente falam que o livro é melhor do que o filme. Mas não foi o caso. E é o próprio autor do livro que diz que a minissérie ficou muito melhor. Desenvolveram muito bem um personagem fantástico vivido pelo João Miguel, que era menor no livro. O final é diferente, mais emocionante. Foi meu primeiro romance, coisa de principiante. A minissérie foi coisa de profissional, de adulto.
Bate-papo com Roberto Carlos e Caetano Veloso no especial de fim de ano do Rei na Globo, em 2008
Volta e meia discute-se no Rio Grande do Sul o fato de os músicos gaúchos, afora as conhecidas exceções, não terem maior reconhecimento no centro do país, na mesma medida que artistas e grupos, por exemplo, de Estados como Pernambuco e Bahia. Fala-se de uma produção mais autocentrada, sem foco além do mercado regional. Você acompanha a produção gaúcha?
Nunca tinha pensado nisso. Claro que o Rio Grande do Sul sempre teve grandes músicos. Amo o trabalho do Vitor Ramil, que é um gaúcho atípico. Tem o Renato Borghetti. O Yamandu Costa é fenomenal, uma coisa de louco, padrão top five da história da música instrumental. Sempre achei interessante os artistas gaúchos terem criado um mercado próprio, que vai do Paraná pra baixo. É um mercado próspero, rico, educado. Vejo o que faz o (grupo) Nenhum de Nós. Se eles quiserem, fazem 300 shows por ano. No Nordeste, já não tem muito isso. Os baianos têm um approach, os pernambucanos têm outro. E tem o marketing, evidentemente. Como mostra João Santana, Duda Mendonça, Nizan Guanaes, o marketing baiano é f***** (risos). Talvez essa seja a explicação.
Você representa uma corrente do jornalismo cultural que evita o confronto com artistas. Foi uma opção natural no rumo de sua carreira, até mesmo por conviver com o universo artístico?
Meu grande objetivo como jornalista foi sempre jogar luz em coisas bacanas que estavam obscuras, trazê-las ao público, sem gastar tempo e espaço esculhambando pessoas, fazendo exerciciozinhos de poder. Esses jornalistas que tentaram fazer carreira assim não sobreviveram. Os artistas sobreviveram. É um exercício vão. Sempre caguei pro poder. Sempre lutei por liberdade e independência. Poder e dinheiro nunca foram meus objetivos. No meu novo livro, se vê como isso me beneficiou. Se não tratasse bem minhas fontes, quantas coisas eu não saberia? O Vinicius, por exemplo, seus romances secretos, bebedeiras, vexames. Imagina se eu contasse isso. Sempre tive do Vinicius as melhores notícias antes de todo mundo. E assim como ele, de muitos outros. Porque eu respeitava a privacidade de coisas que sabia serem sensíveis. Talvez outra pessoa não resistisse e colocasse no jornal, pensando em um escândalo, em brigar com o cara.
Como você observou esse acirramento de ânimos nas eleições?
A pior coisa que pode existir é um país rachado ao meio. Vai ser um ano terrível. Quando começar o processo da Petrobras, o mensalão vai parecer coisa de ladrão de galinha. Dilma já disse que vai combater a inflação, que vai fazer cortes. Os juros subiram, o déficit público estourou, a pobreza aumentou. Dilma vai ter de fazer, não o que Aécio faria, mas o que qualquer um terá de fazer. Números não se comovem com "vontade politica" .
O que você acha da postura de Lobão assumindo a linha de frente da oposição ao governo?
O Lobão é um grande compositor, um dos nossos melhores, mas se prejudica quando se torna um freak político. Ele tem razão em muito do que diz, porque é inteligente, mas também diz muita besteira. Uma das maiores é pedir o impeachment de Dilma, é ridículo e constrangedor. Se fosse contra o Aécio, dependendo do seu arsenal de deboches e acusações, se tornaria um ídolo dos petistas.