Foto: Jean Chung / The New York Times Foto: Jean Chung / The New York Times
Ilha de Heuksan, Coreia do Sul - A Coreia do Sul tem uma lista generosa de alimentos que algumas pessoas consideram difícil de engolir, entre eles pupa do bicho-da-seda cozido e filhotes vivos de polvo, conhecidos por grudar as ventosas no céu da boca dos clientes no que parece uma tentativa desesperada de escapar.
Porém a arraia fermentada desta ilha no sul do país ganha de todos. De longe o alimento mais fedorento da Coreia do Sul, o peixe, chamado hongeo, é descrito tanto pelos fãs quanto pelos detratores como tendo um cheiro que lembra uma latrina. Geralmente servido como pedaços moles de sashimi, o hongeo é apreciado pelos entusiastas pelos vapores de amônia que libera, às vezes tão fortes que acabam por descamar a boca das pessoas.
- Eu costumava achar que só loucos conseguiriam comer essa coisa - disse Park Jae-hee, de 48 anos, executivo de marketing. - Mas é como queijo azul fedorento, não tem substituto depois que você se apaixona por ele.
Sem dúvida, é fácil zombar da culinária de outros países. Pensemos no desprezo europeu pela tendência norte-americana de espalhar ketchup em tudo, de batatas fritas a ovos mexidos. Porém, sul-coreanos extremamente orgulhosos de outros alimentos flamejantes e por vezes odoríferos, como o kimchee, admitem se sentirem repelidos pelo hongeo e confusos diante de sua popularidade crescente.
- Não consigo entender quem neste mundo pagaria para comer peixe podre num restaurante que cheira a banheiro público sujo - disse Huh Eun, melhor amigo de Park.
Até mesmo quem se extasia com seu gosto exótico admite alegremente que a paixão tem um custo social. Tomar o metrô depois de comer hongeo pode resultar em isolamento, com os outros passageiros olhando de relance e indo embora. Donos de restaurantes especializados em hongeo aconselham os fregueses a guardar os paletós em sacos plásticos antes da refeição e oferecem desodorante.
- Já comi cachorros, durião e insetos, mas esse é o alimento mais desafiador que já provei - afirmou Joe McPherson, norte-americano fundador do blog de comida coreana ZenKimchi, que se tornou divulgador dessa culinária. - É como lamber um penico.
Antes uma especialidade regional na porção sudoeste das províncias de Jeolla do Norte e do Sul, o humilde peixe acompanhou a migração de trabalhadores rurais durante o boom industrial da Coreia do Sul no século XX, com restaurantes especializados em hongeo sendo abertos para atender a população crescente de nativos espalhados pelo país.
Mesmo assim, demorou para a moda se espalhar, prejudicada pelo odor formidável, fornecimento limitado e preconceitos regionais que perseguiam Jeolla, onde fica a ilha de Heuksan. Durante décadas de ditaduras militares, as elites do país, muitas vezes da província rival de Gyeongsang, foram acusadas de relegar Jeolla ao ostracismo e fomentar uma parcialidade que sobreviveu ao governo autoritário.
Então, uns dez anos atrás, um acordo de livre comércio com o Chile ajudou a reduzir a resistência ao peixe que é a marca registrada de Jeolla, inundando o mercado com hongeo chileno relativamente barato e inspirando a abertura de novos restaurantes.
Entre as legiões de fãs do peixe, a textura aveludada do fígado congelado do hongeo derretendo na boca com uma pitada de sal e pimenta tem sido comparada ao foie gras. Para eles, o cheiro é o principal atrativo, em conjunto com o formigamento na boca que acompanha o choque da amônia. Para os gastrônomos, uma refeição adequada com hongeo deve ser finalizada com sopa de hongeo, fumegando com o cheiro da amônia em ebulição.
Apesar da nova popularidade do prato, o centro de adoração ao hongeo continua sendo a ilha de Heuksan, ao largo da ponta sudoeste do país. O peixe que se alimenta no leito do mar e tem um sorriso de máscara de Guy Fawkes é há muito tempo a base da economia local, e os barcos pesqueiros rumam várias vezes por mês às aguas vizinhas onde o hongeo se alimenta e bota ovos.
Os moradores da ilha dizem que o peixe começou a ser popular por aqui por causa de uma peculiaridade da biologia. Na época anterior à refrigeração, os antepassados dos pescadores descobriram que o hongeo era o único peixe que podiam levar ao continente, a 97 quilômetros de distância, sem salgar. O hongeo não tem bexiga e excreta o ácido úrico pela pele. À medida que fermenta, a amônia é liberada lentamente, impedindo que estrague.
- O hongeo não consegue fazer xixi, e é aí que começa o milagre - disse Kim Young-chang, 77 anos, dono de um restaurante de hongeo na ilha. Fiel convicto do poder do peixe, Kim citou um lista de benefícios à saúde que viriam de sua ingestão. - Nunca vi alguém ter problemas estomacais depois de comer hongeo - proclamou.
Entre os moradores de Heuksan e os vizinhos do outro lado do mar em Jeolla continental, o hongeo é um antigo integrante da tradição e do folclore local. Nenhuma festa de casamento é considerada completa se o peixe não for servido. Os residentes afirmam que Kim Dae-jung, dissidente que virou presidente, talvez o filho mais famosos de Jeolla, sentia tanta falta do peixe que os políticos deram um jeito de levar porções frescas durante os anos de ditadura militar enquanto ele esteve exilado.
O peixe também ajudou a rejuvenescer a ilha de 2.200 habitantes, antes um porto importante, onde milhares de barcos buscavam abrigo dos tufões e as tripulações negociavam em peixe e visitavam os bares então famosos. A cidade entrou em decadência nas últimas décadas, quando que barcos com câmara frigorífica podiam ir mais longe e a ilha passou a ter menos uso como entreposto comercial ao largo da costa.
Porém, com a popularidade crescente do hongeo, os moradores começaram a vender a ilha como ponto turístico onde é possível provar o autêntico "hongeo à moda de Heuksan" e restaurantes especializados substituíram muitos dos bares à beira-mar. Yoon Sung-jong, 51 anos, chefe do correio local, disse que 80 por cento dos pacotes que saem da ilha contêm o peixe, endereçado a restaurantes no continente, onde um prato de hongeo da ilha de Heuksan pode custar até US$ 150.
Hoje, um dos sinais mais claros da ascensão do hongeo aos olhos da nação também desanima quem preza pela harmonia regional. Segundo Lee Jeong-bok, linguista, a palavra entrou para o léxico das críticas que pessoas de Gyeongsang lançam contra os vizinhos de Jeolla, com a implicação clara de que estes são repulsivos. Para não deixar barato, moradores de Jeolla usam o nome de uma iguaria de Gyeongsang - cavala semifrita - para descrever os inimigos de lá.
Contudo, o hongeo também ajudou a vencer preconceitos regionais. Moradores de Gyeongsang foram atraídos à Ilha de Heuksan para experimentar o peixe. E num gesto de boa vontade em 2005, Park Geun-hye, nativa de Gyeongsang e então aspirante à presidência, enviou dois hongeos de presente quando Han Hwa-gap, político de Jeolla, foi eleito chefe de um partido oposicionista.
Quando Han trocou de lado sete anos atrás para apoiar a corrida de Park à presidência, recebendo em troca ameaças de morte, ele citou, entre outras coisas, o quanto ficou comovido pelo simbolismo do presente.