A memória coletiva do golpe de 1964 é feita de silêncios. Só agora, passados 50 anos da aliança civil-militar que alterou os rumos do país, o cenário começa a mudar. Ex-guerrilheiro e hoje professor titular de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense (UFF), Daniel Aarão Reis, um dos principais intelectuais a se debruçar sobre esse tema, está lançando Ditadura e Democracia no Brasil (Jorge Zahar, 196 páginas, R$ 44,90). Para ele, ao fim da ditadura, a sociedade brasileira optou por valorizar versões apaziguadoras, nas quais todos (ou quase todos) puderam encontrar um lugar cômodo em uma história cheia de incômodos.
Tal estratégia, segundo Aarão Reis, resultou no predomínio de uma determinada versão dos fatos que inclui uma sociedade subjugada e reprimida por um regime apenas "suportado" mas sem apoio, como uma "força estranha e externa". Confira a seguir os principais trechos de entrevista concedida por e-mail:
Zero Hora - Como o senhor avalia a historiografia do golpe no Brasil?
Daniel Aarão Reis - Tivemos um primeiro momento dominado pela memorialística, nos anos 1980. Um segundo, pelos estudos sobre a "resistência" ao regime, com ênfase sobre a luta armada contra a ditadura, nos anos 1990. Finalmente, embora estes dois primeiros gêneros continuem sendo explorados, abriu-se uma fase mais fecunda na primeira década do século 21. As principais mudanças orientam-se no sentido de compreender melhor as bases sociais e históricas da ditadura, de pensar a ditadura como um "constructo" social, embora ela nunca tenha deixado de suscitar oposições. Da mesma forma, tenta-se superar as "arquiteturas simplificadas", da luta entre o "bem" e o "mal", problematizando-se metamorfoses, ziguezagues, a chamada "zona cinzenta", na qual vicejam atitudes de neutralidade, de indiferença, sem falar nas ambiguidades e nas ambivalências (o pensar-duplo), em que determinados atores surgem apoiando e criticando, ao mesmo tempo, o regime ditatorial. Nestes parâmetros, a história faz a crítica de uma certa tradição "militante" para realizar plenamente seu ofício: compreender, explicar, interpretar.
ZH - Por que só agora a historiografia começa superar a omissão do papel das forças civis no golpe?
Reis - Houve muitos atores, de direita e de esquerda, interessados nas omissões e ocultações. À direita, muitos não querem o desvendar de cumplicidades e participações. À esquerda, muitos se recusam a refletir sobre as bases históricas e sociais da ditadura. Preferem definir "bodes expiatórios", numa perspectiva "militante", e fazer economia de uma reflexão mais profunda.
ZH - A referência à ditadura como "civil-militar" é uma tendência nas novas abordagens historiográficas?
Reis - De modo geral, quem opta por esta expressão quer avaliar melhor e mais profundamente o que houve neste país, evitando o canto de sereia dos "bodes expiatórios". Não se nega o protagonismo - óbvio - dos milicos, mas eles não governaram solitariamente o país. Quanto a mim, ultimamente, tenho preferido o termo simples de "ditadura". Liderada por milicos mas com ampla e decisiva participação civil.
ZH - Em seu livro, o senhor alerta para uma série de conflitos presentes na memória veiculada sobre o golpe. Pode explicar melhor?
Reis - A história da ditadura tem sido muito contaminada pela memória. Memória pode, certamente, auxiliar e subsidiar, mas não é história. Há atualmente na sociedade brasileira uma "memória imperativa" que, não raramente, toma o caminho de reflexões maniqueístas, apoiadas em arquiteturas simplificadas. Enfatiza "resistências" e constrói novas modalidades de "histórias oficiais". Pode ter um certo papel na mobilização de consciências, mas contribui pouco para a compreensão da história do país.
ZH - O fato de terem se passado 50 anos do golpe é suficiente para um distanciamento crítico maior e, consequentemente, análises mais completas por parte dos historiadores?
Reis - O distanciamento pode ser um fator positivo, mas não é um antídoto. Há grandes "batalhas" de historiadores sobre temas relativos à história antiga e à história medieval. No Brasil, muitos se digladiam sobre temas concernentes à história colonial. O bom antídoto é o historiador se ater às regras e aos procedimentos clássicos de seu ofício, desconfiar da "história vigiada" e dos "imperativos de memória".
ZH - O senhor é criticado por questionar a memória produzida sobre o golpe e as abordagens que de certa forma demonizam os militares?
Reis - Quem sai para a chuva, não pode evitar seus pingos. Encaro com serenidade as críticas dos "militantes" da história e gosto dos debates e das polêmicas. O que importa é avançar na compreensão de nossa história. Não tenho dúvida de que a corrente em que me encontro contribui mais e melhor para a história recente do regime ditatorial do que as histórias oficiais e militantes. Espero bem que o cinquentenário da instauração da ditadura intensifique os debates, melhorando nossas percepções e suscitando novas direções de pesquisa.
ZH - Para alguns historiadores, estudar os movimentos conservadores e de direita naquele período pode ser uma forma de justificar a ditadura. Qual é a sua opinião sobre isso?
Reis - O historiador trabalha com evidências. Trata-se de explicar o que aconteceu, compreender e interpretar. Estudar as oposições à ditadura é fundamental. Em minha tese de doutorado, refleti sobre as organizações comunistas nos anos 1960. Tenho orientado e participado de inúmeras bancas a respeito deste assunto. Trata-se de um gênero consolidado que continua sendo importante para melhorar nossa compreensão da época. No entanto, descurou-se, e muito, do estudo mais amplo de como a ditadura instaurou-se, suas bases de sustentação, seus antecedentes e desdobramentos. A ditadura é expressão de uma época, uma construção social e histórica. Não foi um acidente, nem foi regida por marcianos. Estudá-la por estes ângulos inovadores contribui para conhecermos melhor as bases do autoritarismo na sociedade brasileira. Uma condição indispensável para superarmos de fato as tentações autoritárias e consolidarmos nossa ainda muito frágil democracia.