Sempre que se aproxima a Páscoa, fico a pensar em Johann Sebastian Bach. Talvez ninguém tenha colocado melhor em música os acontecimentos da Sexta-Feira Santa do que Bach. Nem antes - as austeridades do canto gregoriano de tempos muito antigos - e nem depois - Andrew Lloyd Webber no seu musical Jesus Cristo Superstar dos anos 1970. Não é indispensável ser religioso para deixar-se envolver pelas Paixões bachianas. Basta aceitar os episódios narrados como se fossem improvisações literárias e já está. Acrescente-se um pouco do contexto em que as Paixões eram mostradas lá atrás no seu tempo e o quadro fica completo. A partir daí, basta ouvir.
As Paixões de Bach sempre me levam de volta a São Tomás. Não o santo propriamente dito, mas a igreja de São Tomás onde Bach está enterrado, em Leipzig. A história é complicada. Quando Bach morreu, ele foi enterrado na igreja de São João, como era a norma com todos os diretores de música de Leipzig, antes e depois dele. O local exato entre tantos mortos foi esquecido, e outros e mais outros foram chegando. Além disso, a música de Bach caiu em desuso durante quase 150 anos e foi somente no final do século 19 que alguém se lembrou de procurar o que restava dele.
Com a tecnologia disponível naqueles tempos, foi encontrada a ossada de um "homem velho, não grande, mas de boa estatura", como diz o relato. Identificada como sendo de Bach, a ossada foi colocada num sarcófago especialmente construído e inaugurado com muita fanfarra em 1900. A história continua: em 4 de dezembro de 1943, em plena II Guerra, um ataque aéreo inglês despejou milhares de bombas sobre Leipzig e a igreja de São João veio abaixo. E o sarcófago de Bach ficou debaixo dos escombros, destinado a novo esquecimento. Ou ao desaparecimento, pois a política soviética do pós- guerra na Alemanha era destruir as ruínas, nunca reconstruí-las.
Mas se aproximava o bicentenário da morte de Bach. Aproveitando a efeméride e antes que a igreja de São João desaparecesse do mapa, como de fato aconteceu, Bach foi transferido para a igreja de São Tomás, distante alguns quarteirões dali - a tempo para as comemorações e levando em conta que tinha sido em São Tomás o emprego mais duradouro e mais influente de Bach em toda sua vida musical. Ao que se conta, o traslado foi feito de carroça e, ao chegar às portas de São Tomás, o carregador disse apenas: "Estou trazendo o Bach aí atrás...". Foi assim que Bach encontrou o seu lugar bem no centro do coro de São Tomás, e lá tem ficado nestes últimos sessenta e tantos anos.
Por isso, visitar a igreja de São Tomás não é para os fracos. Não é algo que se faz como mais uma escala em algum roteiro turístico exaustivo. A igreja não é mais a dos tempos de Bach, tantas foram as reformas para reparar danos de guerra ou por pura necessidade estrutural. Bach certamente não a reconheceria. Não importa. Nós reconhecemos aquele espaço como um monumento a um compositor, um dos mais emocionantes pela posição central que a lápide - e o que está por baixo dela - ocupa no edifício. Chega-se a São Tomás pelos fundos, atravessando uma praça e identificando já de longe o telhado muito alto e muito inclinado que sempre foi a marca mais exótica do prédio. Indo para a esquerda, à procura da porta lateral, passa-se pela estátua de Bach com um dos bolsos da roupa virado para fora, vazio, a simbolizar sua briga por melhores salários nos 27 anos de trabalho em Leipzig.
Entra-se na igreja. Com sorte, um dos dois órgãos estará sendo tocado por algum organista eficiente e, de repente, haja como segurar a emoção. Haja como não chegar às lágrimas naquela igreja iluminada pela luz exterior, onde todas as linhas de perspectiva parecem levar para o túmulo de Bach. Há uma placa comemorando a longa permanência de Bach em Leipzig. Há outra comemorando a visita de Lutero, bem antes. Há um vitral homenageando o músico, a "Janela Bach". Ao lado dela, um dos órgãos que, então, estará soando.
Do outro lado da rua, em frente à entrada lateral de São Tomás, está o Museu Bach que guarda o único pedaço de madeira do órgão que Bach tocava e no qual compôs muito da sua obra. É muito pouco o que sobrou e a emoção inevitável já não é tanta quanto estar dentro do prédio que, irreconhecível ou não, abrigou as estreias das Paixões de Bach, revezando-as com a igreja de São Nicolau, ali perto.
Tudo isso porque a Páscoa está próxima e é a época apropriada para ouvir (tocar? cantar?) as Paixões de Johann Sebastian Bach, na sua celebração musical dos textos evangélicos. O mais surpreendente nessas obras é que a religião se apaga nelas para que os sons se libertem e celebrem episódios nos quais não é preciso crer para ver, neles, a melhor expressão da música humana.