Advogado, filho de Fernando Miranda, escritor desaparecido durante a ditadura uruguaia, Javier Miranda é hoje o responsável pelas políticas de Direitos Humanos no país vizinho e participou ativamente do processo de resgate da memória do regime ditatorial empreendido desde o início deste século. Miranda virá a Porto Alegre para debater em um seminário sobre a democracia e políticas de Direitos Humanos no Cone Sul (destaques da programação abaixo). Nesta entrevista, concedida por telefone de Montevidéu, ele comenta a colaboração entre os países do Mercosul para o resgate da memória de seus períodos ditatoriais e fala da expectativa com que acompanha os trabalhos no Brasil da Comissão Nacional da Verdade, pelo que podem revelar sobre o modelo de ditadura adotado no continente
Zero Hora - Quais os principais tópicos que o senhor pretende discutir em sua passagem por Porto Alegre?
Javier Miranda - Este seminário é produto de um trabalho conjunto que estamos fazendo no Mercosul para o resgate da memória. Eu, como secretário de Direitos Humanos do Uruguai, o que faço é somar-me a essa iniciativa. Além de uma ideia de como temos avançado nas políticas de memória, a visão que posso dar é da importância dessas políticas e da importância da colaboração entre os distintos estados do Mercosul.
ZH - Os diferentes países do Mercosul estão em estágios diferentes de implantação dessas políticas de memória. Como essa colaboração poderia aproximar a experiência do Brasil, em que a Comissão da Verdade recém abriu seus trabalhos, e países como a Argentina e o próprio Uruguai, nos quais esse processo já ocorreu?
Miranda - Creio que, além das políticas regionais, cada país tem suas próprias características, e os processos de redemocratização foram diferentes nos países do Cone Sul. Sem dúvida, o processo argentino, no qual o presidente Raúl Alfonsín impulsionou um julgamento da Junta de Comandantes, é um caso particular, diverso do que ocorreu no Uruguai e no Brasil. Cada Estado, cada país, em função do desenvolvimento e do nível de consciência de sua sociedade, realiza seu próprio processo, e isso tem de ser respeitado. Embora sejamos países irmãos, que viveram realidades similares, e a coordenação repressiva da ditadura de alguma maneira nos fez ter coisas em comum, também é certo que cada um desses países passou por uma abertura democrática bastante distinta. O que podemos fazer é intercambiar nossas experiências, dizer: "este caminho deu bom resultados", "este caminho não nos deu bons resultados e ainda nos gerou problemas em nível social", "este criou dificuldades em que o tema fosse tomado a sério na sociedade".
ZH - E como o senhor tem acompanhado o processo no Brasil?
Miranda - Pessoalmente, tenho muita expectativa com relação ao processo brasileiro. Temos que recordar que o golpe do Brasil foi a primeira das ditaduras de doutrina de segurança nacional na região, e foi o início de um processo que se estendeu a todo o Cone Sul. O golpe no Brasil ocorreu 10 anos antes daqueles realizados no Chile e no Uruguai. Isso implica em que, seguramente, e há alguns elementos que confirmam isso, no Brasil estão muitas informações sobre a estratégia repressiva adotada como modelo na região. Esta é a contribuição histórica que o Brasil pode dar com seu próprio processo. Então, ao mesmo tempo em que precisamos ser extremamente respeitosos com o processo que o país está conduzindo, de esclarecimento da verdade e difusão de documentos, por outro lado pensamos que a Comissão da Verdade pode contribuir não apenas para o Brasil como para os demais países. No Uruguai, acompanhamos especialmente os casos do Rio Grande do Sul, onde dois uruguaios foram sequestrados (Universindo Diaz e Lilian Celiberti, em 1978. Lílian estará em Porto Alegre para o mesmo seminário). Quero ser bem claro na mensagem: nós, aqui, podemos colaborar no processo transmitindo as dificuldades que encontramos, e além disso vocês são muito importantes para nós também no aporte de informações. Creio que esse, inclusive, é o sentido desse encontro. E da iniciativa da reunião da altas autoridades em matéria de Direitos Humanos do Mercosul em construir em Porto Alegre um lugar de referência para a memória da região.
ZH - No Brasil, muitas têm sido as críticas de que processos como os da Comissão da Verdade seriam atos de revanchismo, mais traumáticos do que benéficos, pois prejudicam a decisão tomada durante a reabertura de pacificar a sociedade pela anistia aos "dois lados". O que o senhor pensa dessas críticas, comparando com a experiência uruguaia?
Miranda - Esta tem sido uma crítica recorrente. Creio que a prova de que não há revanchismo é que em todos estes anos, nos quais em nossos países foi muito difícil levar aos tribunais personagens reiteradamente denunciados como violadores de Direitos Humanos, nenhum familiar tomou medidas de Justiça em suas próprias mãos. Pelo contrário. As vítimas e os familiares das vítimas vêm tomando os caminhos institucionais. Porque o que há por trás disso não é tanto o objetivo de causar dano aos responsáveis por essas violações de Direitos Humanos, e sim afirmar a institucionalidade. A necessidade de esclarecer a verdade, e de tramitar pelos tribunais sob as garantias desse processo, é uma reafirmação da democracia. Não vejo, francamente, como isso possa ser mais traumático, e sim o contrário. Mais cedo ou mais tarde a verdade emerge. Pensemos no que se sucedeu na Espanha logo depois da ditadura de Franco e da redemocratização. Hoje, passados quase 40 anos, por toda a Espanha se elevam vozes querendo a revisão do passado de Guerra Civil. Isso é o que vive uma sociedade madura em um processo de transição democrática. Não se trata unicamente de buscar a sanção penal pela sanção penal, e sim para restabelecer uma institucionalidade e de alguma maneira dissuadir futuras violações.
ZH - Muito se tem falado de violações dos Direitos Humanos durante o período da Ditadura, mas, ao menos no Brasil, o ano passado, com suas manifestações, pôs em evidência discussões sobre a atuação do Estado e de seus agentes policiais nos dias de hoje. Quais os desafios o senhor enxerga hoje para a região?
Miranda - Temos desafios fundamentais para os Direitos Humanos hoje, que têm a ver com meio-ambiente, com exclusão social - no que o Brasil tem dado um grande exemplo na região nos últimos anos. Sem dúvida que o manejo das forças encarregadas de manter a ordem é absolutamente fundamental. Não creio que nenhum Estado vá renunciar, em nome da defesa dos Direitos Humanos, a ter uma polícia que assegura a segurança de todos os cidadãos. O que devemos procurar é formar policiais que, em sua função absolutamente legítima de assegurar um marco de segurança cidadania para todos os habitantes, não cometam violações aos Direitos Humanos, isto é, que não haja tratamentos inumanos, torturas, que a atuação da polícia esteja entre os marcos normativos estritos de Direitos Humanos. Todas as tropa de segurança, na medida em que usam a força, podem cometer erros, podem cometer excessos e podem deliberadamente exceder os limites normativos. Temos que estar vigilantes para que isso não ocorra. A função central dos corpos de polícia nos Estados democráticos é dar garantia de segurança para todos.
Semana da Democracia
> De 1º a 5 de abril será realizada em Porto Alegre, no Memorial do Rio Grande do Sul, na Praça da Alfândega, em Porto Alegre, a Semana da Democracia.
> O evento, uma iniciativa do Governo do Estado, inclui debates, painéis e depoimentos com políticos, autoridades, ativistas, artistas e intelectuais que de algum modo se opuseram aos regimes de exceção no Cone Sul.
> A programação das conferências inclui nomes como o secretário de Direitos Humanos do Uruguai, Javier Miranda; o vice-ministro dos Direitos Humanos da Argentina, Luis Alén e a - Ministra-Chefe da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência (SDH), Maria do Rosário.
> Também estarão no fórum personalidades representativas das comissões de resgate da memória dos períodos de ditadura, como Eduardo Jozami, diretor do Centro Cultural de Memória Haroldo Conti (Argentina), Elbio Ferrario, diretor do Museo de La Memória, (Uruguai) e o coordenador da Comissão de Mortos e Desaparecidos da SDH, Gilles Gomes. Outro destaque da programa
> Outros destaque são a presença de Baltasar Garzón, jurista espanhol responsável pela prisão do ditador Augusto Pinochet na Inglaterra e que atualmente é assessor do Tribunal Penal de Haia, e de João Clemente Baena Soares, presidente do Comitê Interamericano de Direitos Humanos.