Passa um tempo engolindo o café e olhando para o outro lado da janela. O jornal, dobrado sobre a mesa, não traz absolutamente nada do que precisa ler. Está cansada dos fatos. De analisá-los. Já faz tempo que remói fatos antigos. Analisados. Na tela do celular, surge a mensagem inesperada de um alguém, um homem, que conhece uma outra ela. Uma ela que já não é mais. No céu, o sol entra em Peixes. A lua esvazia. A mensagem, escrita em letras maiúsculas no visor do aparelho, confessa saudade, admite a falta e exige um reencontro. Pensa em responder apenas com perguntas escritas em letras também garrafais: QUANDO? ONDE? - mas desiste. O reflexo do próprio corpo no vidro da janela deixa claro: já não é mais a mesma.
Calcula o tempo passado desde a última vez em que ela e ele haviam se visto e, no tempo que leva para resolver a equação, projeta o trailer de uma história em comum. A força da memória, quando acontece sem esperar, interrompe o fluxo normal dos acontecimentos e transborda lembrança. Lembrar é físico. O corpo sente. É quase sempre desconfortável. Lembrar é constatar que o tempo passa. Aquele corpo antigo que ela um dia foi agora quer voltar a ser a que já não é mais. No celular, ensaia uma resposta confirmando o reencontro, mas apaga antes de enviar. Ao contrário dos bilhetes, a sabedoria das mensagens de texto nunca enviadas é jamais deixar vestígios. Basta apagar para que sequer tenham existido.
Não está contente em encontrar-se consigo mesma. Não com aquela que a mensagem ecoa. O presente sobreposto ao passado confirma o quanto mudou. Para pior. Está velha. Mais velha. Desliga o telefone e o guarda de volta na bolsa. Sabe ele que ela agora tem um marido? Sabe ele que a filha não para de crescer? Sabe ele que nada do que ela agora é compreende a que um dia foi? A xícara quase vazia, o gosto amargo na garganta, os dentes amarelando. Há sempre uma parte querendo voltar a ser a que não é mais. Uma parte dela quer nunca mais voltar à casa, nem ao casamento, tampouco à vida que agora é. Abre a bolsa só para ler de novo a mensagem recebida. Quem será ele agora? Basta uma resposta, um simples sim, para que o passado retorne dinamitando a aparente tranquilidade dos dias atuais.
O garçom pergunta se já pode recolher os restos. Ela guarda o telefone na bolsa e paga a conta sem lembrar que existe um troco. Foge pelas largas calçadas do Bom Fim. Foge, em vão, de si mesma. Antes que a tarde de quinta-feira termine, sucumbirá ao passado. Retornará a mensagem. E começará uma nova vida, dentro da vida que agora é. Uma vida que foi, sem nunca ter deixado de ser.