Personagens de ópera não sentem calor. Nem frio. As histórias sempre se passam num 21 graus inespecífico. Nas óperas de Verdi, ninguém se queixa da temperatura e nem dá sinais de desconforto, quer as histórias se passem em Tebas ou em Boston, no Peru ou na Babilônia. Às vezes, é crucial saber se há nuvens no céu, se é noite ou se é dia, até saber a hora exata é importante. Mas reclamar do frio? Ou do calor? Não seria elegante. Personagens de ópera não fazem isso, a não ser em óperas de Puccini, mas aí a coisa tem mais a ver com a simbologia do inverno do amor, das geleiras das paixões como cantaria Elis, do que propriamente com alguma preocupação meteorológica dessas que nos têm preocupado nos dias que correm.
Tempestades há, dessas de arrasar cidades. Às vezes, de tão expressivas, as borrascas saem dos limites da ópera e se transformam em peças sinfônicas autônomas, Berlioz que o diga. Pois nas tempestades os compositores se esforçam para demonstrar que música pode, afinal, dizer alguma coisa. E dê-lhe violino subindo e violino descendo para imitar o vento, tímpanos ribombando se fazendo de trovoadas, o entrechocar dos pratos para relampear como é obrigatório nas tormentas, mesmo nessas que se vê ao longe e que nunca chegam aqui. Há de tudo e, enfim, na ópera, há o terremoto ocasional, o incêndio e a guerra. Há até o fim do mundo, e o termômetro nem se mexe!
Com o musical norte-americano, primo menos exaltado da ópera, quem sabe até menos respeitado, a coisa se altera. Logo ocorrem exemplos de termômetros atingindo marcas absurdas, em direção ao topo, com muita importância para o desenrolar da ação. Em Street Scene, de Kurt Weill, praticamente a primeira frase cantada que se houve é "que horrível este calor, que horrível!". Um a um, os personagens se unem para reclamar da temperatura e do incômodo de passar as noites em claro, dos paliativos para fugir do desconforto daquela rua triste e pobre e quente de Nova York na qual se passa toda a ação.
A última frase cantada do musical é também "que horrível este calor, que horrível!", simbolizando o retorno das coisas ao que sempre serão. Entre uma e outra moldura de calor, ocorreu o adultério, o assassinato, o esfacelamento familiar e agora tudo continua, tudo no calor extremo. Até a temperatura exata se sabe: 94 graus Fahrenheit (menos 32, vezes 5, dividido por 9, e aí está em Celsius, foi como me ensinaram...). Corria o frio janeiro de 1947 quando o musical estreou e foi a única tentativa de Weill em direção à chamada "ópera americana" que alguns buscavam por aqueles anos. Mas que ópera teria um "Sexteto do Sorvete", como há em Street Scene, para amenizar o calor?
Quase dois anos depois, no finalzinho de 1948 e também no inverno, estreou outro musical calorento - Kiss me, Kate, de Cole Porter, no qual uma companhia de atores tenta encenar A Megera Domada de Shakespeare ao som de muitas canções e outras tantas danças, no meio do calor. Em 1948, Cole Porter era um compositor acabado, depois de vários fracassos que desdiziam dos seus sucessos dos anos anteriores. De repente, ele renasceu, e Kiss me, Kate é provavelmente a sua melhor partitura, pelo menos é a mais respeitada. No início do segundo ato, todos os personagens estão prostrados de calor e reclamam que "está quente pra danar" (este é o nome da canção...). E vão enumerando tudo o que se poderia fazer a dois, no sentido mais explicitamente erótico ou meramente sensual, mas que não se pode fazer com tanto calor à volta.
Cole Porter foi um mestre do subentendido em letras que os americanos chamam de "risqué" - o apimentado que limita com o pornográfico. Afinal, Porter fez a apologia do sexo pago na canção Love for Sale, cantou as drogas injetáveis em I've Got You Under my Skin e as belezas do ato sexual em Night and Day. São canções que pertencem ao cancioneiro americano ao qual veio se juntar o "Está quente pra danar" de Kiss me, Kate - que algumas montagens mais puritanas até deixam de encenar, de tão constrangidas.
Enquanto pensava nesses calores dos musicais, puxei pela memória e encontrei uma cena de ópera na qual a temperatura é essencial e está bem aparente. Outro dia falei no compositor Janacék e, sei lá porque, ele volta agora. É que, no final do segundo ato da sua ópera mais famosa, Jenufa, há uma onda de frio que sai do palco e invade até a plateia. Um personagem jogou um recém-nascido num lago gelado, com requintes de novela das nove.
Ao voltar para casa, o remorso, este amigo inconfundível, bate à porta, e o personagem se apavora. De repente, o frio invade a orquestra de Janacék e gela até os ossos, e parece que o compositor se dirige ao púbico e não só ao personagem. Pois nessas horas de calor extremo, talvez até mesmo este tipo de frio seria bem-vindo para refrescar as ideias, que importa se é o frio do remorso. A ópera é sempre exagerada, desenhada com traços fortes, muitas vezes incômoda. Bem, se é assim, então essas ondas de calor - na sua desmesura - não deixam de ser operísticas à sua maneira.