A quarta-feira, 24 de outubro de 1917, era mais um dia comum para os moradores do Rio de Janeiro. Por volta do meio-dia, o delegado do 13º distrito foi chamado a atender uma ocorrência inusitada: sentado em um muro, com os pés voltados para dentro de um quintal, o cidadão Francisco Leite tentava pescar - sim, o verbo é este - uma galinha. Com um grão de milho espetado em um anzol, balançava a isca com um caniço, tentando atrair alguma ave desavisada. Ele foi preso em flagrante e levado ao distrito.
Na segunda década do século passado, as notícias veiculadas nos jornais da então capital federal - como, de resto, em todo o país - retratavam uma vida de comovente singeleza. Noticiavam uma gangue de garotos vadios a aplicar surras de cinto em um menor de 10 anos (que não apenas teve sua identidade como seu endereço divulgados) ou a cassação da licença concedida pela polícia de "Nictheroy" para um estabelecimento de nome Hotel Pinto - que, auge da piada pronta, havia se tornado um bordel, frequentado" por gente da peor espécie".
Mas se, em 1917, a capital brasileira podia rir de banalidades cotidianas, do outro lado do Atlântico não havia motivos para alegria. No ano em que o Brasil entrou na I Guerra, após uma série de ataques de submarinos alemães a embarcações nacionais na costa europeia, milhões de soldados já haviam morrido nas trincheiras.
A gota d'água para o ingresso do país no conflito foi o torpedeamento do navio Macau, em outubro de 1917, próximo à costa espanhola. Antes disso, os submersíveis tedescos já haviam afundado os navios Rio Branco (maio de 1916), Paraná (abril de 1917), Tijuca e Lapa (maio de 1917). Em 25 de outubro de 1917, após a nova "agressão boche", o presidente Wenceslau Braz, pressionado pela população, declarou guerra à Alemanha.
Levados a bordo do submarino U-93, comandado pelo capitão-tenente Helmuth Gerlach, de 32 anos, o capitão do Macau, Saturnino Furtado de Mendonça, e o despenseiro, Arlindo Dias dos Santos, nunca mais foram vistos. Na época, o seu desaparecimento ajudou a ampliar a revolta popular contra os imigrantes germânicos no país.
Uma semana depois da declaração de guerra, outros dois navios brasileiros seriam postos a pique (Guahyba e Acary) - os dois abatidos pelo mesmo submersível alemão, o U-151.Até o fim da guerra, o Brasil ainda perderia outra embarcação, o Maceió, atingido pelo U-43, em 1918.
Nossa força naval chegou atrasada
A participação brasileira no conflito foi modesta. Treze aviadores foram treinados nas forças aéreas do exército (Royal Navy Air Service) e da marinha (Royal Flying Corps) britânicos, mas não entraram em combate.
Composta por oito embarcações de guerra brasileiras (entre elas o Cruzador Bahia, na foto acima), a Divisão Naval de Operações de Guerra (DNOG) recebeu a missão de patrulhar a entrada do Mediterrâneo. Entretanto, atingida pela gripe espanhola, que matou centenas de soldados durante a passagem pela costa africana, teve sua chegada à Europa adiada - os navios alcançaram sua área de atuação somente no dia do armistício.
Um dos poucos brasileiros a pegar em armas foi o então primeiro tenente José Pessoa Cavalcanti de Albuquerque - irmão do futuro governador da Paraíba João Pessoa. Em 1918, após estagiar na Escola Militar de Saint-Cyr, José Pessoa combateu no 4º Regimento de Dragões do exército francês. Depois da guerra, após passar por um curso na Escola de Carros de Versailles, ele tornou-se o responsável pela adoção de veículos de combate no Exército brasileiro.
A grande hemorragia da civilização europeia
Há mais de três anos, a Europa vive o maior conflito bélico da história, batizado como a Grande Guerra, pelo fato de sua mortandade ultrapassar em muitos milhões o número de vítimas de embates armados anteriores. E o coração do planeta sangra sem parar.
A aplicação da revolução industrial à lógica armamentista contribui decisivamente para a hemorragia do Velho Continente. Diferentemente de épocas passadas, quando os conflitos eram travados homem a homem, com algum cavalheirismo e ética, na Grande Guerra os efeitos das novas armas são superlativos. E o inimigo pode ser um simples ponto no horizonte, e não mais um soldado que se aproxima na direção contrária - a pé ou a cavalo. De uma só vez, as armas modernas derrubam dezenas de homens. Mais do que nunca, o uso da expressão máquina de guerra faz sentido.
Embora baionetas ainda sibilem nos metros que separam as trincheiras entre ingleses, franceses, alemães, austro-húngaros, russos, belgas, holandeses, turcos, italianos, indianos, australianos, sérvios, canadenses, gregos, montenegrinos, albaneses, búlgaros, romenos e os recém-chegados norte-americanos, na Grande Guerra os tradicionais combates corpo a corpo - com espadas, lanças e garruchas - foram abandonados. Os armamentos são muito mais letais do que os da Guerra Franco-Prussiana (1870 - 1871), que terminou com a conquista, pelos germânicos, do território francês da Alsácia-Lorena, e ainda muito mais mortais do que as distantes Guerras Napoleônicas, do começo do século anterior.
O próprio caráter industrial da guerra impõe aos beligerantes limites éticos e humanitários cada vez menores. Enquanto os homens lutam, suas esposas dirigem bondes, ônibus e até trens e fabricam desde uniformes a aviões, passando por projéteis e canhões e todo o tipo de armamentos, o que, do ponto de vista militar, acaba por justificar o ataque indiscriminado às cidades e às suas instalações industriais. O inimigo não é apenas o homem que empunha armas, mas qualquer pessoa que contribua para a indústria bélica. E, assim, as maiores cidades dos países em guerra - repletas de mulheres, crianças, idosos e civis - tornam-se alvos de seguidos ataques aéreos.
O conflito se espalha por toda a Europa, mas ganha contornos singulares na Bélgica e no nordeste de França, onde ingleses, franceses e americanos - em sua grande maioria - ocupam trincheiras ao longo de mais de 600 quilômetros, separados por dezenas de metros dos alemães e austro-húngaros, também entrincheirados. Entre os contendores, apenas crateras de bombas, mortos insepultos, lama e arame farpado retorcido. No ar pestilento sobre as trincheiras, os soldados convivem com o cheiro da morte, a saudade de casa e o medo de acabar em uma cova rasa, raramente com direito a alguma solenidade. Para completar, dormem e alimentam-se em meio a cadáveres putrefatos e a milhões de ratos e ratazanas, que percorrem os terrenos ensanguentados em busca de comida. Incrível e curiosamente, apesar da guerra em larga escala, avanços de dezenas ou centenas de metros são comemorados como grandes vitórias.(...)
Na linha de frente, além de inimigos como fome, frio, fadiga, escorbuto, tifo, pneumonia e disenteria, os ingleses e franceses enfrentam o terror dos lança chamas, canhões de nitrogênio comprimido que espargem jatos de óleo inflamável a grandes distâncias, transformando os inimigos em tochas humanas instantaneamente.
A capacidade de inovação da indústria bélica germânica, aliás, parece não ter limites. Há dois anos, os alemães inauguraram um novo tipo de combate, a guerra química. Em 22 de abril de 1915, mais de 5.700 cilindros de gás cloro foram usados contra as tropas francesas em Ypres. A nuvem verde espalhada sobre as trincheiras inimigas causou o sufocamento de centenas de oficiais e soldados. Dois dias depois, usando máscaras improvisadas com lenços, ataduras e toalhas embebidos em água ou urina, os franceses tentaram fazer frente à ofensiva alemã. Mas, tecnicamente despreparados para o ataque químico, viram-se obrigados a bater em retirada.(...)
Dos dois lados, a busca de novas tecnologias e armas de combate vem introduzindo, desde o período pré-guerra, uma infinidade de aplicações cada vez mais mortais nos campos de batalha. E a engenharia da morte prospera.
Do lado inglês, o maior trunfo na Grande Guerra é o tank. Veículo motorizado com carcaça de metal blindada, capaz de resistir ao fogo de artilharia, essa fortaleza sobre esteiras é a grande esperança de vitória dos britânicos, apesar da velocidade paquidérmica (2 km/h) e das dificuldades que enfrenta em alguns tipos de terreno.
O maior conflito da história também tem inovações nos céus. No começo da guerra, os aviões - recente invenção cuja patente é disputada entre os irmãos americanos Orville e Wilbur Wright e o brasileiro Alberto Santos Dumont - eram usados apenas como ferramenta de reconhecimento, indicando à artilharia e à infantaria as posições das tropas inimigas em terra. Agora, no fim de 1917, milhares de urubus de metal sobrevoam as principais cidades inimigas, lançando bombas incendiárias e espalhando o terror entre as populações civis, geralmente combatidos por aeronaves inimigas.
No mar, a aposta germânica para tentar neutralizar a imensa frota britânica são os submarinos de guerra. Como defesa para os seus navios mercantes, responsáveis pelo transporte de suprimentos oriundos de outras regiões do planeta, os aliados se utilizam do sistema de comboios, escoltados por vasos de guerra capazes de fazer frente aos submersíveis.
Em terra, além dos devastadores arsenais inimigos, os soldados enfrentam privações e provações nunca vividas em outros tempos de beligerância. A fome passou a ser companheira invisível em quase todas as frentes. No Oriente, os soldados ingleses chegam a sacrificar 20 cavalos por dia para alimentar as tropas. A carne equina é servida por vários dias consecutivos, na forma de sanduíches, pastéis, bifes e sopas. Drama semelhante se repete na frente russa. Mais do que o frio extremo, a falta de mantimentos tornou-se corriqueira na região. Famintos, os soldados do Império Russo não hesitam em sacrificar seus cavalos ou mesmo em apelar para cães e gatos que porventura apareçam nas áreas de combate.
No front europeu, a situação não chega a esse extremo. Barbudos, sujos e ensanguentados, os soldados sobrevivem às semanas de tédio em batalhas sangrentas - mas de poucos avanços - graças a provisões enlatadas.
A falta de comida também é realidade entre as populações civis. Fugindo dos combates, milhares de pessoas de dezenas de nacionalidades migram em todas as direções, procurando manter-se longe do front. Depois de abandonarem os seus lares, nos campos e nas estradas enfrentam a fome, o frio, a sede e a incerteza sobre o futuro. Para os civis que permanecem no caminho das tropas, a guerra se desenha ainda mais cruel. Em áreas ocupadas da França, os alemães saqueiam o que encontram pelo caminho - dos cofres às adegas, nada permanece incólume.
No Brasil, a indústria começa a despontar como atividade econômica relevante. Em 1913, o parque fabril nacional já conseguia atender a quase 100% do consumo interno de calçados. Além disso, quatro de cada cinco peças de roupa usadas pelos brasileiros eram produzidas por fábricas locais, que também respondiam por quase 70% das bebidas e mais de 40% dos remédios consumidos pela população. O Estado de São Paulo contava com o maior centro industrial, abrigando cerca de 30% das fábricas brasileiras.
Nos últimos anos, a indústria vem sendo impulsionada em razão das dificuldades para o fornecimento de produtos de países envolvidos na guerra. Premido pelas circunstâncias, o Brasil busca cada vez mais meios de suprir internamente a produção de itens até então importados. E, diante da impossibilidade de importar, a indústria passa por um surto desenvolvimentista.
Da mesma forma que os prédios crescem verticalmente, na sociedade urbano-industrial que começa a se florescer, as principais capitais também ganham mais - e maiores - chaminés fabris. Nas ruas, o tradicional barulho das carroças, dos tílburis e das bicicletas agora confunde-se com o ronco dos automóveis e o deslizar dos bondes elétricos. Com a industrialização e a ausência de legislações trabalhistas, desenham-se extratos sociais urbanos definidos: de um lado, a burguesia industrial, de outro, o proletariado operário. Mas, em linhas gerais, a economia do país segue fortemente calcada na produção e exportação do café, ainda o esteio da atividade agrícola.
As questões comerciais, no entanto, estão longe de serem as principais mazelas brasileiras. Desde a proclamação da República, o Brasil mantém um sistema democrático de bases questionáveis. Em razão do voto aberto, a manipulação dos currais eleitorais é realidade em praticamente todas as regiões, com a onipresente figura dos capangas amedrontando quem se atreve a votar contra os coronéis - o chamado "voto de cabresto". (...)
Suporte para o desenvolvimento das sociedades mais avançadas, a educação universal ainda é uma utopia no Brasil. A cada 10 brasileiros, oito são analfabetos. E não há dúvidas de que chegar a um curso superior seja privilégio quase exclusivo da elite. Com raríssimas exceções, filhos de pequenos comerciantes, bancários, profissionais liberais, artesãos e funcionários públicos - a classe média brasileira - alcançam o status de bacharéis.
A própria estrutura educacional não contribui para que mais gente chegue aos bancos das escolas superiores. Em todo o Brasil, há apenas 16 cursos de Direito, que formam anualmente cerca de 400 profissionais.
Distante das hostilidades, a República Federativa dos Estados Unidos do Brasil já não se vê tão à margem dos acontecimentos europeus. Em 4 de agosto de 1914, logo na primeira semana da guerra na Europa, o Brasil declarou-se oficialmente neutro, no mesmo dia em que o presidente americano Woodrow Wilson anunciou semelhante decisão. Mas, em 1º de maio de 1916, no norte da Inglaterra, um submarino alemão afundou o navio brasileiro Rio Branco, e a neutralidade do país começou a ruir.
Assim que a notícia do incidente chegou ao país, em 5 de maio de 1916, a população ensaiou uma violenta reação contra os imigrantes germânicos, fomentada pela imprensa, de tendência pró-aliada. Entretanto, o fato de a embarcação ser tripulada principalmente por noruegueses e navegar em águas restritas, a serviço da Inglaterra, acabou por enfraquecer a revolta popular. Segundo nota oficial do governo brasileiro, a tripulação era composta por escandinavos, um inglês e dois noruegueses naturalizados brasileiros.
A tensão entre brasileiros e alemães cresceu em 1917. Em 3 de abril, o Paraná, um dos maiores navios mercantes brasileiros (4.466 toneladas), foi torpedeado por um submarino alemão nas proximidades do litoral francês, e três brasileiros foram mortos. Seguido de nova e mais vigorosa onda de manifestações antigermânicas, o ataque resultou no rompimento de relações por parte do governo brasileiro. Em seguida, outras duas embarcações foram afundadas por alemães, também nas proximidades da costa europeia - o Tijuca, em maio, e o Lapa, em julho -, causando nova revolta país afora.
Em vários Estados, houve manifestações contra a presença de empresários, banqueiros e negociantes de origem teutônica do lado de cá do Atlântico, praticamente impelindo o presidente Wenceslau Braz a abraçar a causa aliada, na esteira de um caminho trilhado anteriormente pelos Estados Unidos. Se ainda não declarou guerra aos Impérios Centrais, como fez o presidente Woodrow Wilson, depois do torpedeamento do Lusitania - que matou 1.201 pessoas, entre elas 128 americanos -, nenhum brasileiro duvida que, caso precise optar por uma das trincheiras, Braz escolherá a da Tríplice Entente, ao lado de americanos, franceses, ingleses e russos. Contribui para essa sensação a inegável influência francesa sobre as elites culturais e econômicas brasileiras e a afinidade diplomática entre os dois países, bem como a admiração dos governantes nacionais - desde os tempos do Império - aos modelos e à organização britânicos.
Do ponto de vista militar, a possível adesão brasileira aos aliados pode trazer poucas vantagens. Sem força aérea, com uma esquadra obsoleta e com um exército mal equipado, o Brasil não tem condições de contribuir na luta contra o poderio dos impérios alemão e austro-húngaro. Em 1917, o país conta com menos de 100 metralhadoras, contra mais de 15 mil da Alemanha.
*Jornalista, autor de U-507: O Submarino que Afundou o Brasil na Segunda Guerra Mundial