Como chegou o fim do ano, é costume aqui em casa organizar as gavetas para guardar só aquilo que presta. Faço essa respiga (parece "respira" pronunciado por alguém que precisa consultar um fonoaudiólogo, mas não é; trata-se simplesmente do ato de respigar - recolher as espigas que ficaram no campo depois da colheita) - faço essa respiga, repito, com a certeza de que não vou me entediar, pois sempre acabo encontrando alguma coisa de valor.
Vejam, por exemplo, a jovem Simone (diz ter 22 anos) e a candura de sua mensagem: "Professor, por que não consigo encontrar a palavra detetizar em nenhum dicionário que consultei? Começo a desconfiar que não é assim que se escreve". Começa a desconfiar? Não é uma maravilha? Há os que não perderiam a chance de fazer piada, mas um professor (é o que sou e o que sempre fui) não pode deixar de reconhecer a honestidade da pergunta, e a resposta deve ser no mesmo tom: "Cara Simone: se procurares dedetizar, vais encontrar, certamente. Da leitura literal da sigla DDT formou-se o dedetê (assim como TV e LP produziram os substantivos tevê e elepê, por exemplo). Para termos o verbo, acrescentamos o sufixo -izar, eliminando-se a vogal final (dedet+izar), assim como aconteceu em burocratizar (burocrat+izar) ou cotizar (cot+izar)". Viram como é? Os que me acusam (e não são poucos) de ser irônico e debochado parece que ainda não perceberam que só uso a ironia com quem merece: os agressivos, os autoritários e os metidos a espertinhos.
Já a postura de Robledo, de Brasília, merece um corretivozinho. Escreve ele: "Boa tarde! Tenho um colega que utiliza constantemente a expressão "Eu vim cá" ou "Não deixe de vir cá", e preciso mostrar a ele a opinião de um especialista". Perceberam? Ele não consegue conviver com este "erro" e cansou de tentar corrigir o colega, o qual, ao que parece, nunca lhe deu pelota; agora, com uma mãozinha aqui do degas, quem sabe? Em momento algum considerou a hipótese de que a expressão esteja correta, e de mim só espera uma explicação mais convincente. A tinta com que escrevo a resposta não é mais aquela que usei para Simone:
Caro Robledo: queres mostrar a teu amigo a opinião de um especialista? Então podes dizer a ele que a expressão é correta, e vem sendo empregada há séculos (desde Gil Vicente, no séc. 15) por todos os bons escritores do idioma. Cá é um sinônimo de aqui; hoje preferimos, sem dúvida, o segundo, mas não há nada de errado em usar o primeiro. Só para constar, vão aqui alguns exemplos de Eça de Queirós e de Machado de Assis, para mim mais do que suficientes: Eça: "Queres tu vir cá um bocado, Raposão?". Machado:"Sua mana? - Há de vir cá passar uns dias"; "Estava ansiosa por vir cá"; "Ele já me disse que há de vir cá para conhecer mamãe"; "Nem eu, disse a velha, mas para isso é que eu vim cá"; e, como esses, dezenas de outros. Querias a opinião de um especialista, e agora a tens - juntamente com um conselho: ao mostrá-la para teu colega, cumprimenta-o por mim, por usar uma expressão consagrada na nossa melhor tradição literária...
Finalmente, há aqueles afoitinhos que, como Lucas Roberto, escrevem só para implicar comigo. Não faz muito, defendi o emprego da expressão "grande maioria" argumentando que embora a maioria comece quando se obtém seja lá o que for acima de 50%, não deixamos de distinguir, por exemplo, uma escassa maioria de uma ampla maioria. Pois lá vem o micuim, certamente contrariado pelo que eu disse: "Professor, defina-me em números quanto seria a grande maioria, a esmagadora maioria, uma espantosa maioria, uma expressiva maioria, etc.".
A resposta, agora, vem escrita com a tinta do reproche: "Ora, Lucas Roberto, deverias saber que a adjetivação é, evidentemente, subjetiva, e vou empregá-la dependendo do que a situação representa para mim. Quem de 100 votos ficou entre 51 e 60 votos, ganhou por escassa ou apertada maioria, se for meu inimigo, mas por ampla ou expressiva maioria, se for amigo. Ganhamos deles com 80% dos votos? Vou chamá-la de esmagadora maioria, isso se não elevá-la para fabulosa ou acachapante. É assim que funciona este mecanismo retórico, e tua tentativa de reduzir os adjetivos a números demonstra que tens ainda muita estrada a percorrer".
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