Quase tudo que leio e assisto sobre urbanismo - precisamos repensar a cidade, devemos priorizar transporte público e bicicletas, o modelo vigente está fadado ao fracasso etc - tem como foco os Estados Unidos. Lógico. As cidades europeias, muito mais antigas, estão mais ou menos organizadas em uma escala humana: serviços e moradias misturados e concentrados em uma área menor, pessoas andando, sentando em cafés ao ar livre, usando um sistema eficiente de ônibus ou metrô. Enquanto isso, na América do Norte, o carro (enorme) é seu melhor amigo, e a ilusão da vida tranquila e da família feliz começa com uma casa no subúrbio. Troque subúrbio por condomínio fechado, e nós poderíamos estar falando do Brasil.
Meu ponto de partida, não tão original: importamos, do jeito que dá, com menos dinheiro e mais desigualdade, o estilo de vida americano, e com isso, evidentemente, a configuração das cidades americanas. Minha desconfiança: muitos de nosso hábitos, que parecem à primeira vista se justificarem pela violência urbana, se explicam muito mais por essa tentativa (grosseira) de reproduzir o american way of life.
Dois exemplos. A ensaísta californiana Rebecca Solnit, em um artigo intitulado Open Door (2005), comenta sobre o fato de alguns animais silvestres estarem, felizmente, retornando às áreas de subúrbio. Mas, enquanto se constata sua presença pelas marcas nos pátios nevados das casas, encontramos uma absoluta falta de pegadas de crianças. As crianças não brincam mais no jardim. Perigo real ou sociedade paranoica?
O ótimo documentário canadense Radiant City (2006), retrato debochado sobre a vida suburbana, também traz alguns dados pertinentes. Em 1969, 50% das crianças norte-americanas ia a pé ou de bicicleta para a escola. Em 2001, o número de crianças conduzidas (de carro) pelos pais passou para 90%.
Nenhuma estatística de violência do Canadá ou dos Estados Unidos parece justificar essa perda da autonomia juvenil. São simplesmente hábitos de uma sociedade que, cada vez mais, prioriza o automóvel e os espaços privados, em detrimento da rua e da troca com o Outro.
Eu, que cresci em uma grande capital brasileira achando que minha liberdade era uma meia liberdade exclusivamente por culpa da violência urbana, começo a ter sérias dúvidas.