Em 1988, Nei Lisboa cantava que queria "morrer bem velhinho, assim, sozinho, ali, bebendo um vinho e olhando a bunda de alguém". Vinte e cinco anos, algumas rugas e muitos cabelos brancos depois, a morte já não ronda tão explicitamente a poesia do compositor. Ao invés disso, em seu novo trabalho, Nei mostra-se um observador sagaz da passagem do tempo e suas consequências, num disco que não poderia ter outro nome que não A Vida Inteira.
O tempo parece permear não apenas o conteúdo do novo trabalho, mas a sua construção. Sete cabalísticos anos separam A Vida Inteira de Translucidação, em que Nei já tratava do envelhecer com seu humor característico ("Estou rindo sozinho, de um maluco, um velho caduco, decerto sem noção, que, zombando dos vizinhos, mostra a bunda na janela, em translucidação").
Nesse ínterim, lançou um livro de crônicas (É Foch!, 2007) e um disco ao vivo seguido de turnê (Vapor da Estação, 2010) e excursionou com um show especial em comemoração aos seus 30 anos de carreira - inaugurada oficialmente com Pra Viajar no Cosmos Não Precisa Gasolina (1983), um dos marcos da música pop no Rio Grande do Sul.
- Um descanso de compor era bem-vindo - explica Nei sobre o retiro.
O processo de composição, segundo o músico, começou em 2011 com o nome provisório de Telas, Tramas e Trapaças do Novo Mundo, que, embora não tenha sido oficializado, acabou norteando espiritualmente o álbum, farto em observações ao comportamento humano destes tempos.
- Há uma crítica explícita, temperada com ironia, sobre vários aspectos do cotidiano: a ansiedade do consumo e do prazer imediato, a inconsistência nas relações e na comunicação virtual. Evidentemente me incluo, estou conectado e não imune às possibilidades de felicidade no boleto e no cartão. E por isso mesmo sou tão cético quanto bem-humorado a respeito.
O primeiro single, a funkeada No Boleto ou no Cartão, reedita a máxima de que dinheiro não traz felicidade - manda buscar. E não economiza no sarcasmo: "Um corpo de galã, de hoje pra amanhã, uma máquina de amar, de lavar e de secar, com um plano familiar, de cem vezes pra pagar". A Vida Inteira versa sobre a efemeridade das relações ("Dez mil amigos vão lhe dar toda certeza, dez bons motivos para amar sua beleza"), enquanto Mãos Demais mira o comportamento de manada observado na vida real e virtual.
Há espaço também para o amor, embora tratado com a mesma desconfiança e humor afiado: Bife é pura dor de cotovelo ("Eu perdi, numa tacada só, tesão, amor, paixão e uma ilusão vulgar, é de chorar, é de dar dó"), Correntinha resvala no cancioneiro de fim de noite ("Amor não há, bonitinho como deve ser, naquela casinha de sapê, como aquele filme na TV, como só existe em sonhos") e Jogo de Trapaças tem o tempero do despeito ("Recolha suas cartas, seu jogo de trapaças, me poupe dessas mágicas de amor").
- Por um lado, A Vida Inteira tem um sentido de uma linha do tempo, da idade vivida, e, por outro lado, fala de plenitude, da vida por inteiro - define Nei. - Esta é uma época instigante, de acontecimentos e transições muito significativos, que são um prato cheio para a reflexão. Mas um CD não é um tratado acadêmico, e eu sou só um compositor popular aqui com minha sociologia de fundo de quintal.
"O novo disco é uma cesta básica de Neis Lisboas"
Zero Hora - Como você situa este novo disco na sua obra?
Nei Lisboa - Acho que é uma cesta básica, e bem sortida, de Neis Lisboas: baladas e blues de amor escorchado, grooves pop com crítica social, música para ouvir com as letras do encarte na mão. E isso já me satisfaz. Estou de volta como compositor, o que me reconcilia comigo mesmo e com o futuro. Lembrei dia desses, andando de bicicleta, de que, na época do Cena Beatnik, quando também voltei a compor depois de vários anos, dizia: ainda melhor do que gravar um disco é encontrar o caminho para o próximo.
ZH - O projeto gráfico do disco mostra suas rugas e seus cabelos brancos. Qual o peso da passagem do tempo na sua obra e na sua vida?
Nei Lisboa - Pode parecer um disparate falar de velhice aos 54 anos, com tanto octogenário saltitando no parque. Mas a verdade é que o assunto me chama não é de hoje. E o passar do tempo me trouxe rugas e cabelos brancos, essas aberrações genéticas de que já ninguém padece, pelo que se vê por aí. Então, olhar A Vida Inteira como um testemunho de envelhecimento fazia todo o sentido. A idade tem suas mazelas e exames constrangedores, mas prefiro vivê-la sem artifícios, e gosto também de muito do que que ela traz. Mesmo artisticamente, gosto de envelhecer: acho que a minha música deve se assentar com seus sinais do tempo, ao invés de perseguir bobamente cada modernidade que apareça.
ZH - Há algumas referências à velocidade da vida moderna. É um tema que lhe intriga?
Nei - Sem dúvida. A tecnologia é fascinante, quando nos facilita a vida. Mas detrás desse afã social por performance e produtividade, o que há não é um novo ser humano redimido pelo paraíso digital. Há uma indústria de gadgets, outra de antidepressivos, e sócios de uma rede social, loucos por um capital. Nosso tempo vivido, uma experiência subjetiva, é um dado bem concreto na planilha de quem lucra com ele. Estamos trabalhando mais e mais estressados, acelerando a vida, para chegar aonde? A ideia de que é preciso aproveitar incansavelmente o tempo, como alerta a psicanalista Maria Rita Kehl, já invadiu até nossas horas de lazer, que devem ser também "produtivas" e bem documentadas para evitar algum devaneio mais prolongado e subversivo.
ZH - Borá, o local citado na faixa "Bora de Borá", é uma alegoria a Porto Alegre ou uma mistura de várias cidades?
Nei - Pode ser qualquer lugar. A Borá original, que o censo de 2010 apontou como a menor cidade brasileira, é uma simpática ilha urbana no interior de São Paulo. Vista e descrita na internet, toca a gente pela singeleza, dá vontade de visitar. Mas o jogo de palavras era muito tentador, então recriei uma Borá fictícia de onde se almejasse ir (em)bora, com a carência própria de um interior profundo e também de um moralismo provinciano. Nesse sentido, nem é bem um lugar, mas um estado de espírito, que pode estar presente como um viés em qualquer cidade ou metrópole do mundo. E Porto Alegre não me parece hoje um modelo em particular de provincianismo.
:: Relembre a participação de Nei na série Ao Pé da Letra, com Verão em Calcutá:
O que vi da vida
Nei Lisboa volta o olhar para o cotidiano em "A Vida Inteira"
Novo disco estará disponível a partir desta quarta-feira
Gustavo Brigatti
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