Em uma coluna escrita para o caderno Cultura de meados de março, o patrono da Feira do Livro 2013, Luís Augusto Fischer, já falava sobre o premiado Daniel Galera e o então recém lançado Barba Ensopada de Sangue. Relembre:
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Hora de reunir o pessoal para confirmar a profecia: Daniel Galera é um grande escritor. Jovem ainda, já grande. Com três narrativas longas no currículo (Até o Dia em que o Cão Morreu, 2003, novela; Mãos de Cavalo, 2006, romance; Cordilheira, 2008, romance), mais um álbum em quadrinhos chamado Cachalote, 2010, em parceria com Rafael Coutinho, chegamos agora a Barba Ensopada de Sangue, lançado ano passado (Cia. das Letras, como os demais). Romance imperdível; é certo que em suas páginas o leitor passará horas naquele interessante e desejado estado de tensão, pela força dramática que consegue impor.
Não é à toa que Galera tem ganhado muito espaço de divulgação como um darling de sua geração e de sua forte editora, assina contratos para tradução a várias línguas, entra em todos os rankings de apostas para novos no Brasil e na América Latina (está na seleção brasileira escalada pela revista Granta, com circulação planetária, é agora é o mais jovem escritor a representar o Brasil na Feira do Livro de Frankfurt, Alemanha), enfim está sendo aplaudido em toda parte. Há motivos consistentes para tal e tanto.
Já foi saudada sua enorme capacidade descritiva. Exemplo: a certa altura do novo romance, amigos, jovens (entre eles o protagonista), estão bebendo. Bebendo de ficar bêbado, sabe como é? Aí descreve o narrador: "Estão enrolando as palavras e desistindo de frases no meio do caminho. Escuta com clareza o que pretende dizer dentro da cabeça mas a boca deforma as palavras na hora de enunciá-las". Me parece perfeita a nomeação das reações dos bebuns, como aquilo de desistir das frases no meio de sua formulação. Acertos assim, e outros de maior extensão, se disseminam pelo livro e são um dos encantos da leitura - daqueles que fazem a gente ler, se dar conta do virtuosismo e dizer, silenciosamente, "É bem assim".
Essa qualidade depende de outros acertos, de outras marcas. Como outros comentaristas já explicitaram, sua narrativa é fortemente masculina, exala testosterona; com exceção do romance Cordilheira, protagonizado e narrado por uma mulher (e talvez por isso a única obra de Galera que não me convenceu), seus personagens são homens jovens, cuja existência é vitalmente corporal - os sofrimentos relatados são vividos de modo intenso, o empenho físico ocupa o centro das cenas e mesmo dos enredos. Essa marca se completa, no novo romance, pela presença incontornável de uma cadela, pivô de toda a história.
Avô valentão, pai suicida
Não estragarei muito a surpresa dando um desenho geral do enredo. O romance abre com uma conversa entre um pai e seu filho (este o protagonista, sem nome). A relação não é lá grande coisa, como costuma ocorrer entre pais e filhos, mas nesse caso o furo é bem mais embaixo: o pai anuncia que vai se matar. Não pede consolo, nem cogita mudar de ideia; só pede um favor: que depois de sua morte o filho trate de levar sua cadela de estimação para um destino piedoso, porque ele, o pai, não terá coragem. O filho renega, se debate com o problema moral e prático com que se defronta sem desejar; tudo é narrado já com o fio esticado - impossível para o leitor ficar indiferente aos fatos, por causa da linguagem, da economia de meios, do foco preciso não na psicologia profunda de cada um, nem nas causas remotas do que ali acontece, mas nas ações, nos jeitos de olho e mão, com a voz narrativa em terceira pessoa colada ao protagonista.
Também já se disse que Galera guarda uma enorme afinidade (para não dizer dívida para) com o escritor norte-americano Cormac McCarthy, autor de romances de grande força descritiva, secos e densos, povoados de homens que arriscam o literal pescoço em ações honradas, em meio a cenários interioranos, vastos, impositivos e silenciosos. McCarthy e Galera prestam muita atenção aos processos de amadurecimento dos personagens, o que confere aos romances um ar muito eficaz de relato de aprendizado.
Na conversa, outra ponta da trama é apresentada: diz o pai que seu pai, avô do protagonista, havia morrido em Garopaba, em circunstâncias complicadas. Foi morto por muita gente ao mesmo tempo, num baile em que, tendo faltado luz momentaneamente, os assassinos se aproveitaram para tomar vingança daquele sujeito meio arrogante, brigão, apelidado de Gaudério. Isso tudo, diz o pai, se é que de fato morreu esse avô, porque a investigação policial foi fraca, o enterro talvez tenha sido uma fraude.
Bem; passada essa conversa, vamos encontrar o filho, no vigor de sua juventude, ex-atleta de triatlo e professor de educação física, mudando-se para Garopaba, naturalmente com a cadela, que ele não teve coragem de mandar sacrificar. Quer ao mesmo tempo afastar-se da Porto Alegre em que sua vida transcorrera até então - uma outra ponta do complexo enredo dá notícias de uma briga sem conciliação com o irmão do protagonista, aparentemente o preferido dos pais, que casou com ninguém menos que a namorada do nosso herói -, ficar sozinho com suas dores e, quem sabe, desenrolar o fio da estranha morte do avô, naquele paraíso.
O mergulho que o romance faz em Garopaba é outro motivo de grande acerto. Não apenas pela paisagem, que é parte essencial da força narrativa, mas pela vida social: Galera sabe nos transportar para o miolo de uma cidade esquisita, como são talvez todas as cidades turísticas de ocupação sazonal - uns meses de euforia e um largo ano de pasmaceira -, aproximando-nos de modo muito sensível da mentalidade dos nativos, daquela mescla histórica que é a de todo o litoral desde pelo menos Florianópolis para baixo, até o fim do Brasil, luso-brasileiros e índios, vivendo em cidades de horizonte acanhado, com códigos de ética restritos, e vendo passar a história, da época de fartura de pesca ao atual momento, de turismo ecológico.
No ano vivido em Garopaba acontece de tudo: amores, desamores, amizades, mas também perigos verdadeiros, enfrentamentos com a natureza selvagem e com inimigos locais. Na abordagem desse material, há no romance uns quantos trechos da mais alta voltagem, daqueles que deixam o leitor siderado, sem conseguir largar a leitura nem conciliar o sono. Certos personagens e cenas têm a força que a grande literatura pode ter.
Maturidade
Uma série de acertos como essa não pode impedir a percepção de alguns limites. Há dois momentos de menor força, destoando do conjunto. E são dois momentos-chave. Um acontece pelo meio do volume, quando o protagonista é reconhecido, meio fantasmagoricamente, por um cantor nativista gaúcho em apresentação na cidade. A sugestão é que o cantor viu nele uma reencarnação justamente do avô Gaudério, inimigo do cantor décadas antes.
A outra ocorre justamente no final. Após uma sequência narrativa que deixa o leitor de coração na mão, acompanhando uma busca insana do protagonista (ele tem a intuição de que certo monge, que vive isolado numa caverna à beira-mar, pode ser seu próprio avô, que então não teria morrido!) que é, ao mesmo tempo, uma descida aos infernos da natureza elementar (o mato, as rochas, sobretudo o mar, numa cena de sobrevivência que me fez pensar nas dificuldades que terá o diretor do filme a que o livro vai dar origem, certo), isso e mais uma luta física marcante (origem do título do livro), acompanhamos o desfecho, que desce muito o tom e o tônus: o protagonista, ao final, é muito mais o jovem adulto incompreendido e queridão, que não quer mal a ninguém e só faz o bem, até mesmo a custo de seu corpo maltratado, do que o homem que acabamos de ver em ação.
Mas bem: Barba Ensopada de Sangue dá mostras da maturidade de um romancista, o que não é pouca coisa. Romancista com gosto pelas trajetórias de vida, atento à tradição realista mas informado das novidades. Se escapa alguma comiseração algo imatura, como nesse final, há elementos que atestam maturidade rara; para não ir muito longe, eu assinalaria a linguagem (a narração pratica um português sulino, um porto-alegrês fluente como nunca antes) e a seriedade com que encara a passagem à condição madura (não há sofrimento nem morte aleatórios). De lambuja, Galera escreveu um monumento ficcional sobre o desafio, a bravata, a honra, essas experiências tão caras ao mundo do Sul do Brasil e a todas as experiências masculinas vitais mundo afora.