Passou um tempo observando o outro lado da janela. A casa, no lado oposto da rua, já quase não existia mais. Demoliam-na, lentamente. O bairro, a cada pequeno corte, tornava-se o que nunca mais seria. Afim de não testemunhar a destruição, fechou a janela da sala e voltou ao quarto. A janela do quarto, cuja vista antes dava para o rio, agora era uma imensa parede branca. As construções cresciam, roubando o sol que um dia não faltou.
No quarto escuro, ligou a televisão. Dentro dela, um importante arquiteto apresentava a teoria de que moradores acima do quarto andar se afastam da realidade das ruas. Quanto mais alto o apartamento, mais distante o corpo do convívio terrestre. O homem, nunca tendo habitado o topo das árvores, não estaria preparado para os grandes edifícios. Habitante das cavernas, fomos feitos para ocupar o chão. Segundo o arquiteto, moradores das alturas desenvolvem uma perigosa síndrome ainda não diagnosticada. Observando a realidade do alto, acabam por menosprezar o cotidiano terrestre. Quando no chão, tornam-se violentos, incapacitados para a vida em terra.
Por mais que, trancada no quarto, se recusasse a enfrentar o que acontecia do outro lado da rua, os ruídos advindos da demolição eram a certeza de que a pequena casa já não existia mais. Constatando a destruição do bairro, calculava os anos que ainda tinha, o preço de uma mudança, a incerteza de um novo endereço. A vizinhança já não era mais o bairro que um dia foi. O sol aquecendo o chão da sala nos dias de inverno, a vista quente para o rio, o canto incessante dos pássaros dentro das árvores carregadas de primavera eram parte de um passado. O bairro havia deixado de ser. Pequenos cortes agora configuravam uma triste realidade feita de prédios muito altos, pequenas casas destruídas, ruas engarrafadas e novos habitantes oriundos de um lugar estranho. Eram os habitantes do alto, os novos moradores de um bairro antigo, os principais responsáveis pela morte da comunidade que ela viu nascer. Comprando barato o que não tinha preço, descaracterizavam uma cidade cuja história poderia ser contada através da arquitetura de um tempo. Para onde quer que olhasse, haveria sempre uma parede escondendo a paisagem.
Alienada dos pequenos cortes, habitava agora uma cicatriz feia demais para ser suportada. Ligou para a imobiliária e pediu que avaliassem o imóvel. Estava decidida a partir. Livre de uma história que não existia mais, começaria um novo corpo em um outro lugar. São sempre mais assustadoras as cicatrizes advindas dos pequenos cortes.