A tempestade que se esperava para aquela noite não veio, mas isso não impediu uma sessão de horror literário na Biblioteca Pública do Estado. Convidados pela Feira do Livro, 18 autores nacionais e estrangeiros passaram a noite de sábado e a madrugada de domingo escrevendo contos de horror nos salões pouco iluminados da Biblioteca. O resultado foi uma antologia produzida em uma noite.
A programação Tu Frankenstein 2 tinha o objetivo de reproduzir, em tom de homenagem, um dos saraus literários mais famosos da literatura ocidental. Em 1816, na residência de verão do poeta inglês Lord Byron, na Suíça, ele e alguns amigos - que incluíam seu secretário John Polidori, o também poeta Percy Shelley e a então jovem amante deste, Mary Godwin - desafiaram-se a escrever um conto de horror inspirado nas histórias góticas alemãs que liam para se entreter. No dia seguinte, Mary, então com 19 anos, apareceu com o embrião do que seria mais tarde o romance Frankenstein, clássico do horror literário. Inspirada no episódio, a organização da Feira reuniu os autores no prédio da Biblioteca Pública, ainda em reformas, para redigir, nos salões do segundo andar, uma história de horror até 7h da manhã seguinte.
O confinamento literário começou por volta de 19h30min, com direito à presença do patrono Luís Augusto Fischer, que compareceu, cumprimentou todos e ficou até em torno das 22h, mas não se engajou no desafio. No segundo andar da Biblioteca, luminárias posicionadas estrategicamente garantiam o clima sombrio necessário. Os escritores fizeram um breve tour para conhecer o espaço e, mais tarde, instalaram-se no segundo andar, ao qual se tinha acesso pela grande escadaria logo à direita da entrada principal, na Riachuelo.
O primeiro o sair
O português Francisco José Viegas e a mexicana Guadalupe Nettel, que tinham sessão de autógrafos marcada para a noite na Praça, chegaram mais tarde, por volta de umas 21h30min. Viegas sentou-se em um divã estofado, abriu um laptop e começou a engendrar uma história de crime em Porto Alegre, cidade em que morou por um ano. De vez em quando, deixava o trabalho e descia para fumar um cigarro na porta do prédio. Guadalupe sentou-se a uma mesa na mesma sala e por ali ficou. Histórias de horror e crime não são bem a sua área de atuação, ela havia ido mais para acompanhar a atividade. Ambos tinham de pegar um avião de manhã cedo, e por isso, por volta de umas 23h30min, Viegas desceu com seu computador e avisou:
- Já matei uns dois. Posso ir?
Não havia necessidade de concluir o conto ao longo da madrugada, e por isso Viegas e Guadalupe se foram. O francês Alexis Aubenque, que veio a Porto Alegre autografar a edição nacional de seu best-seller policial Sete Dias em River Falls, mostrou disciplina. Pegou emprestado o laptop da coordenadora da Área Geral da Feira, Jussara Rodrigues, subiu para o segundo andar, sentou-se em uma mesa de frente para o busto mal iluminado de Aristóteles e ali ficou escrevendo, sem se levantar em momento algum. Trabalhava em um conto que revisitava seu dia na cidade, intitulado Sete Horas em Porto Alegre, numa paráfrase do título de seu romance. Por volta de meia noite, levantou-se, chamou Jussara para mostrar o arquivo em que o texto estava salvo e deixou a biblioteca.
Uma hora mais tarde, foi a vez do argentino Federico Andahazi. Um dos inspiradores da atividade - que foi idealizada por Jussara Rodrigues após a leitura do romance As Piedosas, que reconta o sarau de histórias de horror na casa de Byron - Andahazi estava trabalhando em uma história que partia do Tu Frankenstein. Desceu as escadas e, no saguão, anunciou satisfeito: "matei seis dos escritores aqui presentes". Mais alguns minutos para uns retoques, e Andahazi foi outro escritor a dar adeus à Biblioteca.
Concentração e diferentes métodos criativos
No andar de cima, os que permaneciam alternavam momentos de concentração e escrita com tempos mortos de olhares no vazio pensando no próximo passo. Um grupo escrevia em um círculo de poltronas no meio de um dos salões, incluindo o americano residente há mais de uma década em Porto Alegre Christopher Kastensmidt. Ele concluiu um primeiro conto por volta da meia noite, e, entusiasmado, iniciou a redação de um segundo. Um deles, em português, o outro, em inglês. Sob o olhar vigilante do busto de Júlio de Castilhos, Max Mallmann alternava a redação de sua história com alguns passeios pelo andar de cima, espiando com uma lanterna as lombadas dos livros guardados nos armários de cada salão. Simone Saueresssig também levantava por vezes do computador e ia explorar os demais salões amplos e sombrios.
O editor e escritor Rodrigo Rosp, sentado a uma poltrona, escrevia a mão. Só depois da meia noite é que começou a passar a limpo o material em um computador. Seu método de trabalho incluía elaborar um esqueleto da história substituindo trechos inteiros por lembretes para si mesmo, como "aqui descrever o ambiente" ou "segue a ação e depois muda". As lacunas são preenchidas apenas na fase final da escrita, já no computador. Por volta de uma da manhã, o argentino Gustavo Nielsen, autor de A Outra Praia, que também vinha escrevendo à mão, achou que o método não estava rendendo e deu uma fugida até o hotel para trazer um laptop. De volta meia hora mais tarde, recomeçou seu trabalho no salão egípcio, do qual ele era o único ocupante após a saída de Andahazi.
O espaço da descontração
Com bebidas, sanduíches e salgadinhos, o saguão de entrada, no andar de baixo, era um espaço tão frequentado quanto o andar de cima, só que, ali, as conversas eram entusiasmadas. O casal Celly Borges e M.D. Amado, que escreveu um conto em dupla, debatia com o editor Cesar Alcázar, da Argonautas, adaptações literárias. O paraibano Bráulio Tavares mostrava-se perplexo pelo fato de uma nova geração estar descobrindo como "cult" o filme Showgirls, de Paul Verhoeven, campeão de execração crítica nos anos 1990. João Pedro Fleck, um dos idealizadores do FantasPoa, identificava-se como um dos admiradores da produção, argumentando a seu favor. Além de literatura e cinema, os papos regados a refrigerante, cerveja ou energético também versavam sobre os rumos dos contos de cada um, e quanto ainda faltava para o fim da história (o limite máximo era de nove páginas, mas alguns remavam para completar quatro).
À medida que a madrugada avançava, terminaram as deserções. Quem concluía sua história descia e se juntava ao papo. Com o auxílio do computador, Nielsen considerou seu conto finalizado por volta de 3h, mas passou o resto da madrugada revisando o que havia escrito. Enquanto muitos ainda ocupavam o salão, apareceu para uma visita o pianista Roberto Piñeiro, uruguaio residente em Porto Alegre, e tocou quatro músicas ao piano. Foi aplaudido e cumprimentado pelos presentes, que aproveitaram a bem-vinda chance de fazer um pouco de hora e reorganizar as ideias. Após sua saída, os autores ainda em atividade voltaram a seus cadernos e computadores.
A noite de escrita foi concluída por volta de 5h. As histórias devem ser reunidas em uma antologia a sair ano que vem. Aí será a vez do público ser convidado a tomar seu assento no sarau e analisar o resultado.